Vítima é menina de 4 anos. Professora lavou cabelo de colegas, mas não o dela; creche diz que não houve discriminação.
lícia Civil investiga um caso de discriminação racial em uma creche pública de Samambaia, no Distrito Federal. A vítima é uma menina de 4 anos. A mãe da criança, Polyelle Conrado, disse que na última segunda-feira (20), a filha chegou chorando em casa porque a professora teria lavado o cabelo de todas as colegas, menos o dela porque era “duro”. A mãe registrou ocorrência na delegacia que agora vai ouvir a escola.
O Centro de Educação da Primeira Infância Caliandra é uma creche pública que atende 136 alunos em turno integral. Todos os dias, antes de voltar para casa, as crianças tomam banho com a ajuda de monitores. De acordo com Polyelle, desde segunda-feira a filha não quer mais voltar para a escola porque tem “cabelo duro”. A criança pediu para alisar os cabelos.
“Não aceito isso. Por que a minha filha é diferente e os outros não são? Ela é igual todos. Eu não acho que minha filha tem o cabelo ruim. Então eu fico muito chateada com isso.”
A diretora do Centro de Educação, Edvane Cosmo, disse que não houve discriminação, racismo, preconceito ou bullying, mas um mal entendido. Segundo ela, todos os educadores são capacitados, a escola está conversando com a família e já trocou a monitora de turma.
“Não foi assim, má intenção, não por parte da gente e muito menos da monitora de não estar fazendo essa lavagem.”
A diretora explicou que conversou com a professora da sala e com a monitora. Disse ainda que houve um comentário informal da mãe, que não queria que lavassem o cabelo da criança. Mas não há nenhum registro desse pedido.
A mãe da menina nega. Disse que nos dias chuvosos ela até achava bom que a filha não lavasse o cabelo na escola. Mas como a situação foi se repetindo, pensou que era por causa do racionamento de água no DF. Só esta semana a menina explicou que a “professora” não tocava no cabelo dela.
“Eu não aceito, eu peço justiça porque eu não vou ficar com a minha filha dentro de casa, sem ela poder ir pra escola, sem ela fazer nada. Ela vê os outros, agora, ela corre. Antes não, ela conversava, ela falava, ela brincava, agora, ela não quer mais”, disse Polyelle.
De acordo com o Ministério Público do DF, este ano os promotores já receberam dez denúncias por preconceito ou discrtiminação racial no Distrito Federal. No ano passado, foram 129 denúncias. A professora da Universidade de Brasília (UnB), Suzana Xavier, que trabalha com o tema diversidade, explica que o problema é o racismo velado.
“Infelizmente, o racismo não só é banalizado, como ele é negado todos dias. As pessoas tem comportamentos racistas, né? Não verbalizam, geralmente é velado e até tem pessoas que dizem não ser racistas quando na verdade são porque não conseguem reconhecer, dizer-se racista.[…] Mas racismo no Brasil é uma coisa que tá implementada e que a gente tem que combater”, afirma a professora.
Segundo Suzana, o cabelo para o negro é identidade. Quando há discriminação na infância, diz ela, o trauma pode ter consequências para a vida inteira e interferir até no desenvolvimento da criança.
“Deixar o cabelo da criança como ele é, valorizar esse cabelo, valorizar a diferença, diversidade é isso, nós não podemos trabalhar com o conceito de que vamos aceitar e tolerar, mas o conselho que nós damos é acolher e valorizar.”
A poeta e atriz brasiliense Cristiane Sobral já escreveu diversos poemas sobre a aceitação do cabelo afro como formação da identidade da mulher negra (veja vídeo abaixo). Segundo ela, é importante refletir sobre como tem sido feita, ao longo dos anos, a construção da auto-imagem das mulheres negras.
“Essa auto-imagem muitas vezes colocou a necessidade para uma aceitação social de utilizar um cabelo que fosse um cabelo preparado quimicamente para se aproximar dos cabelos lisos.”
Cristiane afirma que no Brasil os padrões de beleza foram construídos para que as mulheres negras não considerassem o cabelo natural como uma opção estética positiva. “Foi disseminada a crença de que os cabelos crespos são cabelos ruins, são cabelos que não crescem, são cabelos que não tem paciência, que não tem brilho. A crença de que o cabelo é ruim e de que é o cabelo que jamais vai poder ser aceito numa entrevista de emprego, numa balada, ou em uma festa de casamento é a negação da própria identidade”, diz a escritora.
Cristiane diz que, para ela, aceitar o cabelo natural não deve ser uma imposição nem obrigação, mas que isso implica em mudanças na educação, na mídia e na aceitação. “É um ato de amor, uma maneira de gostar mais de nós mesmas”, completa.