Lei sancionada por Temer prevê maior autonomia; no futuro, cartórios poderão emitir CNH, passaporte e carteira de trabalho, por exemplo. Convênios sairão ‘no médio prazo’, diz associação.
Lei sancionada pelo presidente Michel Temer na última semana abre espaço para que os cartórios de todo o país emitam documentos de identificação pessoal – carteiras de identidade, de trabalho, habilitação de trânsito e passaporte, por exemplo. Para isso, é preciso que as associações estaduais (ou a nacional) façam convênios com os órgãos que, atualmente, emitem cada documento.
Até agora, cada convênio do tipo precisava de uma autorização expressa e individual da Justiça. Segundo o vice-presidente da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen), Leonardo Munari, isso aumentava o tempo de tramitação, e dificultava o acesso do cidadão a esses documentos.
“Existem cartórios em todas as cidades do país. Muitas vezes, as pessoas do interior precisam viajar para emitir o RG, o passaporte. A ideia é colocar o serviço público na maior quantidade possível de cidades”, explica.
Mesmo assim, Munari prevê que os convênios sejam firmados “a médio prazo”. A expectativa é que os primeiros resultados dessas parcerias só sejam visíveis em 2018.
“Pode demorar um mês, ou um ano. A experiência mostra que não é bom ter pressa nisso. É bom começar com projetos pilotos, para poder prestar um bom serviço.”
A lei vale para os cartórios civis – aqueles que emitem, hoje, as certidões de nascimento, casamento e óbito. No caso dos documentos com “padrão nacional”, como a Carteira Nacional de Habilitação (CNH) e o passaporte, um único convênio com o Denatran e a Polícia Federal, respectivamente, poderia valer para o país todo.
Em São Paulo, segundo Munari, existe um acordo que repassa dados das certidões de óbito à Secretaria de Saúde estadual. Com isso, a pasta pode fazer o cancelamento automático na lista de beneficiados por remédios de alto custo, agilizando a atualização do cadastro. O exemplo pode ser replicado em todo o país.
“A carteira de identidade é mais difícil, porque cada unidade da Federação tem seu Instituto de Identificação. No Rio de Janeiro, quem emite é o Detran, por incrível que pareça. E lá, temos um projeto piloto em cinco cartórios, que já estão emitindo a 2ª via da identidade desde a semana passada”, diz Munari.
CPF: criação e cancelamento
Desde 2015, cartórios de 15 estados e do Distrito Federal já emitem o CPF junto com a certidão de nascimento, sem custo adicional para as famílias. Isso acontece porque a Receita Federal montou uma central nacional para integrar os dados com os cartórios.
Como a lei sancionada na última semana não existia, esse processo precisou de autorização da Justiça. Segundo a Arpen nacional, quase 2 milhões de CPFs já foram emitidos por esse procedimento.
Desde a última segunda (2), os cartórios desses mesmos locais também podem cancelar CPFs de brasileiros mortos, no momento em que a certidão de óbito é emitida. Para evitar problemas com homônimos, a ideia é que isso só aconteça quando o CPF for conhecido – pela família ou pela polícia, com base em documentos encontrados com o corpo, por exemplo.
“Se você cancela o CPF, um terceiro não vai conseguir usar aquele dado para burlar a lei, cometer uma fraude. A gente sabe que há pessoas que usam o nome de mortos para conseguir empréstimos, por exemplo. Quanto mais rápido essa informação [da baixa no CPF] chega ao poder público, mais fácil ele pode agir”, diz Leonardo Munari.
Além do DF, estão integrados a essa rede os seguintes estados: Acre, Amapá, Ceará, Espírito Santo, Goiás, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Paraná, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro, Santa Catarina, São Paulo, Rio de Janeiro e Roraima.
A Arpen nacional não trabalha com um cronograma estrito para integrar os demais estados. Segundo Munari, como 16 unidades da Federação aderiram à central em três anos, há expectativa de completar o ciclo até 2020.
Preço e segurança
O Brasil tem quase 14 mil cartórios de registro civil em atividade, e a adesão deles a esse tipo de serviço pode facilitar o acesso dos cidadãos aos documentos. Mas mais importante que assinar os convênios é garantir a logística para todo esse funcionamento.
Os passaportes, por exemplo, só são entregues nas delegacias e nos postos avançados da Polícia Federal – pouco mais de 100, em todo o Brasil. O documento custa R$ 257,25, e o valor é pago em uma Guia de Recolhimento da União (GRU). Se o convênio for firmado, essas informações terão de circular entre os órgãos, e o valor pode até subir.
“Isso vai ser discutido caso a caso. Se o ente público disser que o custo não pode ser repassado ao cidadão, a gente vê o que faz, como resolver.”
Já o fator “segurança” não deve gerar preocupação adicional, segundo Munari. O vice-presidente da Arpen nacional afirma que, mesmo hoje, os cartórios de registro civil do país já lidam com uma série de “informações sensíveis”, sem que haja prejuízo ou risco ao cidadão.
“Quando eu estou no cartório e faço um documento de adoção, ou uma mudança de sexo, eu trabalho com dados muito sensíveis, que os envolvidos muitas vezes querem manter sob sigilo. Via de regra, nós já temos grande preocupação com isso, e continuaremos a ter.”
Naturalidade à escolha
Toda essa “modernização” surgiu, na verdade, a partir de um projeto bem mais simples. Quando foi enviada pelo Palácio do Planalto ao Congresso, a Medida Provisória 776 previa apenas uma nova regra para o registro da naturalidade dos recém-nascidos. Todo o resto foi adicionado durante a tramitação na Câmara e no Senado.
Por “sorte”, a ideia original foi mantida. Pela lei, as famílias que viajam para cidades maiores para ter o bebê poderão escolher qual cidade natal vai constar na certidão de nascimento – se o local da maternidade, ou o local de residência da criança.
“As cidades pequenas não têm mais maternidade, e é comum que as pessoas viajem para as cidades grandes da região. E isso criava uma naturalidade artifical, porque a família ia lá só ter o filho, voltava, e o registro ficava lá”, explica Munari.
“Isso tem impacto direto no Fundo de Participação dos Municípios (FPM), por exemplo, porque o registro de nascidos em cada cidade é um dos critérios para repartir a verba federal.”
Retificação
Além de todas essas mudanças, a lei mais recente também facilitou a correção de informações incorretas nos documentos emitidos pelos cartórios de registro civil – por enquanto, as certidões de nascimento, casamento e óbito. Até agora, qualquer alteração dependia de aval da Justiça.
“As pessoas que vieram de outros países em épocas de guerra, ou até antes, costumavam ‘abrasileirar’ os nomes, e isso dava uma bagunça enorme. Também é comum errar algum dado pessoal na certidão de casamento, trocar um dígito do CPF. Agora, se houver prova do erro, a gente pode corrigir no próprio cartório”, diz Munari.
A “prova”, nesse caso, pode ser um documento oficial de um antepassado ou da própria pessoa. Essa correção é importante, por exemplo, nos casos em que o cidadão brasileiro precisa confirmar o histórico familiar a governos internacionais, em busca da dupla nacionalidade.
“Um dos principais pedidos de mudança de nome, de correção, está ligado à dupla cidadania. A gente percebe um crescimento nessas demandas no dia a dia dos cartórios, nos últimos anos.”
Essa mudança não se aplica, no entanto, a outros tipos de erros – por exemplo, quando os pais percebem em casa que o filho foi registrado com a grafia errada. Como não existe uma “prova” do erro, a mudança precisa ser autorizada pela Justiça local.