O projeto representa um sonho de quatro décadas
“Plié, jeté, frappé”. Os passos do balé clássico, com movimentos repetidos à exaustão, arrancaram lágrimas. E não foram de dor, mas de emoção. Na tarde de um sábado frio, 75 jovens começaram a mudar a história da dança clássica no Distrito Federal. Eles participaram da audição para a escolha de 30 bailarinos que vão compor o primeiro corpo de baile profissional do Balé da Cidade de Brasília. Os testes, no Centro de Dança do DF, foram conduzidos pela renomada bailarina Ana Botafogo, diretora do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, e Marcelo Misailidis, consagrado bailarino e coreógrafo.
Os selecionados para compor a primeira companhia de dança do Distrito Federal — 20 mulheres, 10 homens e duas crianças aprendizes —, serão contratados para uma temporada, com salários fixos e benefícios. Começam a trabalhar em agosto. “Foram 43 anos lutando para que Brasília tivesse um corpo de baile. Finalmente, esse sonho está se tornando realidade. É uma felicidade ver tanto entusiasmo nesses jovens”, disse, emocionada, a diretora técnica da nova companhia, Regina Maura.
Alçada ao posto de madrinha do Balé da Cidade de Brasília, Ana Botafogo, 40 anos como bailarina, sendo 37 deles dedicados ao Teatro Municipal do Rio de Janeiro, foi ovacionada logo que apareceu na sala de aquecimento do Centro de Dança do DF. O sorriso franco e as palavras carinhosas transmitiram garra para todos os concorrentes. Brasília, segundo a eterna primeira-dama da dança brasileira, é uma grande escola de balé clássico e uma cidade com uma capacidade excepcional de exportar talentos para outros estados e para companhias internacionais. “A criação de uma nova companhia de balé é sempre motivo de grande alegria. É mais um espaço para a arte e um campo de trabalho para os bailarinos”, disse Ana Botafogo.
O bailarino e coreógrafo Marcelo Misailidis, parceiro de Ana Botafogo em diversos espetáculos, conduziu os testes. Para ele, é mais do que justo que a capital do Brasil tenha uma companhia profissional. “Essa é uma grande conquista de gerações passadas que desbravaram essa terra e que lutaram por mais espaço para o balé clássico. Vi muito entusiasmo nesses jovens em abraçar e acolher o projeto”, explicou.
Determinação
Empolgação e determinação marcaram a audição. Os testes duraram quatro horas e reuniram bailarinos com idade a partir de 12 anos. Os jovens vieram de várias localidades do DF. Participaram da seleção bailarinos de outras cidades, como Belo Horizonte, Goiânia e Anápolis. Rafaella Peres, 20 anos, era só determinação. A jovem de Ceilândia Norte tem até experiência internacional. No ano passado, ela participou de um concurso durante a Semana Internacional de Dança de Brasília. A apresentação solo foi premiada com uma bolsa de estudos de três meses em Lausanne, na Suíça, onde a moça teve aulas diárias com profissionais estrangeiros.
Estudante da Faculdade de Dança do Instituto Federal de Brasília, a jovem sonha em se tornar bailarina profissional e depois, como professora, levar essa arte às regiões mais pobres. “Antigamente, a dança clássica era mais elitizada, mas a situação está melhorando. Quero que o balé seja conhecido nas comunidades mais carentes. Tem muitos talentos escondidos que precisam ser descobertos”, disse Rafaella.
Rhaissa Santos Nobre, 18 anos, também já poderia ter vivenciado uma experiência internacional. Há três anos, a jovem fez audição para integrar uma companhia de dança de Nova Iorque, durante uma temporada na cidade. A moça passou nos testes, mas a aprovação não garantia a alimentação e a estadia nos Estados Unidos. A falta de patrocínio colocou um ponto final no projeto de Rhaissa. Em compensação, injetou mais gás no sonho da jovem de se tornar uma grande bailarina. “A dança clássica é a coisa mais importante para mim. Vivo para a dança e estou ansiosa com essa oportunidade de poder integrar uma companhia profissional em Brasília”, revelou Rhaissa.
Entre os rapazes, a disputa por uma das 10 vagas no Balé da Cidade de Brasília também foi bastante acirrada. Márcio de Sousa Silva, que prefere ser chamado por Márcio Júnior, 27 anos, começou a fazer aulas de balé clássico há seis anos. O início tardio na dança foi compensado com muita dedicação e, hoje, Márcio já dá aulas em duas academias da Asa Norte. “Quem começa mais cedo tem uma melhor flexibilidade. É mais difícil para quem começa tarde”, explicou Márcio.
Os homens que fazem balé clássico têm mais benesses nas companhias, segundo o designer de produtos Pedro Jardim. Para o rapaz de 23 anos, não fossem as regalias oferecidas pelas academias para atrair os meninos para a dança clássica, a arte ficaria incompleta, sem a participação masculina. Pedro e o irmão gêmeo, Paulo, sempre gostaram da dança, mas foi somente quando faltaram rapazes para a encenação do espetáculo Copélia é que os dois receberam a proposta irrecusável: uma bolsa de estudos integral para fazer balé.
À época, aos 17 anos, os irmãos nem pestanejaram — aceitaram imediatamente a proposta. “Só assim a gente conseguiu fazer dança clássica”, disse Pedro, que hoje também ensina a dança para crianças de três a 10 anos, em uma academia na Asa Sul.
Pedro garante que o preconceito dos pais não passou da primeira apresentação. A oposição foi vencida logo na estreia dos gêmeos, prestigiada por toda a família. “Meus pais perceberam que existe um grande estereótipo sobre os homens que fazem balé. Eles entenderam que o homem tem um espaço próprio e seu papel é bem definido na dança”, explicou Pedro.