Com exceção das drogas legais, não há nenhuma outra com aceitação tão crescente como a maconha, a erva consumida por cerca de 180 milhões de pessoas no planeta. A aceitação se mostra no debate em favor de sua legalização, ou de sua descriminalização. Nos Estados Unidos, 33 dos cinquenta estados já descriminalizaram o porte da maconha para uso recreativo ou medicinal — e em onze deles houve liberação de venda. O exemplo mais notável é o Uruguai, um país com apenas 3,4 milhões de habitantes, que se tornou o primeiro, em 2013, a legalizar a produção, o comércio e o uso da marijuana.
As experiências são relativamente recentes e, portanto, seu saldo definitivo ainda é desconhecido. Mas, enquanto isso, há movimentos em diversos países em prol da liberalização do consumo e do porte da droga. Mesmo no Brasil, o Supremo Tribunal Federal retomará agora em junho uma discussão, interrompida em 2015 por um pedido de vista do então ministro Teori Zavascki, sobre a descriminalização do porte de até 25 gramas para cidadãos com mais de 18 anos. Quando a discussão foi paralisada, o placar estava em 3 a 0 a favor da descriminalização.
No bojo desse movimento global, os profissionais de saúde fazem um sério alerta. Eles julgam que a discussão jurídica e comportamental não inclui um aspecto essencial, a questão da saúde dos consumidores. “De forma surpreendente e assustadora, o hábito entre os jovens tem sido ignorado na maioria das decisões das autoridades”, diz o psiquiatra Ronaldo Laranjeira, da Universidade Federal de São Paulo, referência no tratamento de dependência química no Brasil. “Com isso, estamos criando uma legião de adultos psicóticos.” Pois é justamente no campo da saúde física e mental que acaba de surgir uma novidade.
Na edição de fevereiro, o conceituado jornal americano Jama Psychiatry publicou um estudo que reúne informações de onze pesquisas de universidades dos Estados Unidos, da Europa e da Oceania. O resultado: pessoas que usam maconha quando jovens têm risco maior de se tornar adultos com depressão (37% acima da média populacional), ter pensamentos suicidas (50% a mais) e são três vezes mais propensas a tentar tirar a própria vida. O levantamento reuniu dados de 23 317 pessoas. Eram homens e mulheres que haviam fumado até perto dos 18 anos e tinham parado; e também pessoas que continuaram a fumar pelo menos até os 32 anos. Os problemas de saúde detectados nos dois grupos — dos que pararam aos 18 e dos que continuaram a consumir a erva — foram altamente semelhantes. A conclusão dos pesquisadores: é na adolescência que a maconha inflige seus maiores danos. Os efeitos deletérios são detectados a partir de quatro cigarros semanais, ao longo de pelo menos um ano — quantidade que define o consumo crônico da droga. “Tolerar o uso da maconha nessa fase da vida é um dos atos mais irresponsáveis que os pais podem ter com seus filhos, e eles mesmos com sua consciência”, diz Laranjeira.
O motivo da agressão tem origem na própria constituição do organismo humano. Nenhuma droga encontra tantos receptores prontos para interagir com o cérebro como a maconha. Tal efeito vem sobretudo de um dos compostos da erva, o tetraidrocanabinol (THC). Ele imita a ação de substâncias produzidas naturalmente, os endocanabinoides, neurotransmissores que participam da comunicação entre os neurônios, as chamadas sinapses. Interferir nesse mecanismo pode tornar as sinapses ineficientes. É o que faz o THC, ao ocupar o lugar dos endocanabinoides. No corpo jovem, isso pode deixar marcas indeléveis. Da puberdade até por volta dos 25 anos, o cérebro vive um processo conhecido no jargão científico como poda neural. Nela, as sinapses modificam-se intensamente, para se consolidar na fase adulta (veja o quadro). A presença da maconha, nessa sinfonia, desafina a orquestra, e os neurônios passam a fabricar sinapses frágeis. É ineficiência que, tendo começado cedo, pode se perpetuar. “Se o adulto que fumou maconha de modo crônico na juventude se considera bem, intelectualmente apto e ágil, a medicina revela que ele muito possivelmente está aquém do que poderia ter sido”, explica o psiquiatra Valentim Gentil, do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo.
Por algum motivo ainda não totalmente decifrado pela medicina, há áreas em que a perigosa afinidade neural com a maconha é ainda mais intensa. Uma delas é o córtex frontal, associado a habilidades como aprendizado, memória, atenção e tomada de decisões. Ou a região parietal, que responde pela percepção de estímulos sensoriais. Quando essas áreas são afetadas pelo THC, dá-se o aumento do risco de depressão e tentativa de suicídio na vida adulta, como apontou o estudo publicado no Jama. O usuário adolescente pode vir a ter, mais tarde, também dificuldades permanentes de concentração, raciocínio e planejamento, mesmo quando deixa de usar a droga. “As consequências tardias podem contribuir para a maconha ser subestimada e ter fama de inofensiva. Talvez esse seja o maior perigo dessa droga”, diz o neurocirurgião Arthur Cukiert, da Sociedade Brasileira de Neurocirurgia.
Em contraste, os efeitos diretos do álcool e da cocaína sobre o cérebro se dissipam, na maioria das vezes, com mais facilidade, poucos dias depois de interrompido o consumo — embora, ressalve-se, os distúrbios provocados pelo uso contínuo de álcool e cocaína sejam devastadores. No cérebro, essas duas substâncias deixam as membranas dos neurônios mais frágeis. Mas essas estruturas celulares têm alta capacidade de regeneração, com a interrupção do consumo. Tanto a cocaína quanto o álcool liberam grandes quantidades de dopamina, o hormônio do prazer. A sensação é de euforia, de poder. Já os efeitos da maconha, o relaxamento e o torpor, caem como uma luva para o adolescente, que está numa fase da vida em que não se encaram grandes responsabilidades práticas mas se experimenta uma montanha-russa de comportamentos e emoções provocados pelas alterações hormonais. Mais: a maconha é barata. Com cerca de 4 reais compra-se 1 grama, o suficiente para um cigarro.
Nunca se usou tanta maconha como agora. Dos 180 milhões de consumidores no mundo, 3 milhões estão no Brasil — o dobro em relação há uma década. Seis em cada dez usuários são adolescentes — dos quais cerca de 30% fumam acima de um cigarro por semana. Isso equivale a dizer que, no Brasil, cerca de 540 000 dos adolescentes que estão consumindo a droga hoje podem vir a ser adultos com as disfunções mentais que o estudo do Jama apontou.
Há alguns anos, alastraram-se entre os usuários mais jovens duas formas particularmente prejudiciais de utilizar a droga. Uma delas é o skunk (gambá, em português), uma variedade de planta da maconha com maior concentração de THC. O skunk costuma conter mais de 10% de THC. A maconha comum, por volta de 2% a 4%. O preço de 1 grama de skunk chega a ser até vinte vezes mais alto — e a ação, muito mais agressiva. Um estudo conduzido em 2015 pelo Instituto de Psiquiatria, Psicologia e Neurociência do King’s College em Londres, com 780 pessoas, revelou que o risco de consumidores do skunk ser acometidos de psicoses, como delírios e alucinações, pode ser até três vezes maior em relação aos jovens que nunca usaram a maconha.
A outra maneira agressiva de consumo é pelo estômago. Proliferam nos Estados Unidos e na Europa alimentos preparados com maconha. Há de tudo: balas, pirulitos, bolos, cereais matinais, doces. Hoje em Denver, capital do Colorado, o primeiro estado americano a autorizar o uso recreativo da maconha, em 2014, 45% do consumo da droga já ocorre dessa forma. No Brasil, proliferam em festas e grupos de amigos os alimentos feitos de modo caseiro com a erva. Na internet, há receitas do “chocotonha”, “brigadonha” e “bolonha”. Parte do sucesso nesse tipo de uso é a crença de se tratar de uma via menos agressiva em relação à droga fumada. Não é verdade. O estômago absorve o THC mais lentamente que os pulmões — após a ingestão, uma pessoa pode levar de meia a uma hora completa para sentir os efeitos, ou até mais, dependendo da quantidade de alimento que precisa ser digerida para que a substância possa ser absorvida no estômago. E tende-se a comer mais porque não se sente o efeito imediato da droga.
A maconha é originária da planta asiática Cannabis sativa, que contém 480 compostos. Sua ação psicoativa é conhecida desde a antiguidade, mas o THC foi isolado e reconhecido como o principal responsável pelo efeito há apenas meio século, pelo Centro de Pesquisas de Dor da Faculdade de Medicina da Universidade Hebraica de Jerusalém. A morfina, em termos de comparação, foi isolada do ópio há mais de 200 anos, e a cocaína, das folhas de coca há 150. Além do THC, há outro composto que tem sido estudado atualmente pela ciência, o CBD. Ele é o principal responsável pela ação terapêutica da planta, sobejamente aceita pela comunidade científica (veja o quadro na pág. ao lado). Saber que um dos componentes da maconha faz bem tem o mesmo valor de entender, em detalhes, os mecanismos químicos que levam ao mal, sobretudo até o início da vida adulta. E conhecimento é sempre bom, especialmente em relação a um tema que costuma dividir as gerações e provocar opiniões apaixonadas.