Por 340 dias, Scott Kelly esteve a bordo da Estação Espacial Internacional. Nesse período, ele coletou dados sobre si mesmo. Ele tirou sangue de seus braços, guardou sua urina, jogou jogos de computador para testar sua memória e velocidade de reação e mediu a forma de seus olhos. Duzentos e sessenta quilômetros abaixo, seu irmão gêmeo Mark, um astronauta aposentado, realizou testes idênticos.
Na última quinta-feira (11), pouco mais de três anos depois que Scott retornou à Terra, a Nasa publicou na renomada revista Science um compilado dos resultados de dez estudos que compararam os irmãos. Ele fornece uma oportunidade única de começar a entender o que acontece no corpo humano no espaço – até em nível molecular.
Segundo os pesquisadores, o corpo de Scott experimentou um grande número de mudanças enquanto estava em órbita. O DNA sofreu mutação em algumas de suas células. Seu sistema imunológico produziu uma série de novos sinais. Seu microbioma ganhou novas espécies de bactérias.
Muitas dessas mudanças desapareceram depois que ele retornou à Terra. Mas outras, incluindo mutações genéticas e declínio nos resultados de testes cognitivos, não se corrigiram. O achado levanta dúvidas sobre a segurança de astronautas em futuras longas viagens a Marte e outros planetas. Entretanto, ainda são necessários estudos em uma quantidade maior de astronautas para compreender de forma mais abrangente os efeitos do espaço no corpo humano.
A pesquisa
Embora o homem vá ao espaço há mais de 60 anos, pouco se sabe sobre os efeitos dessa viagem ao corpo. Comparando os irmãos, que são geneticamente idênticos, a Nasa esperava entender melhor essas alterações. “O fato de que eles são gêmeos realmente restringe as alternativas. Podemos dizer que essas mudanças se devem ao voo espacial”., disse Susan Bailey, bióloga de câncer da Universidade Estadual do Colorado e co-autora do novo estudo.
Alterações
Uma das alterações que surpreendeu os cientistas foi o aumento no tamanho dos telômeros de Scott. Os telômeros são pedaços do DNA que ficam no final dos cromossomos, protegendo-os da deterioração. À medida que envelhecemos, eles tendem a ficar mais curtos. Condições como stress e poluição podem acelerar esse desgaste. Por outro lado, bons hábitos, como a prática regular de atividade física e uma boa alimentação, retardam essa redução.
Surpreendentemente, o espaço parece ter o mesmo efeito. Os telômeros de Kelly aumentaram enquanto ele estava no espaço, em vez de diminuir. É como se suas células rejuvenescessem. Tudo bem que ele se exercitava com frequência e tinha uma alimentação controlada, mas os pesquisadores acreditam que o ambiente espacial possa desempenhar um papel exclusivo nesse fenômeno.
A ida ao espaço também pareceu desencadear uma mudança genética em Kelly. Milhares de genes que antes eram silenciosos aumentaram sua atividade. Alguns desse genes codificam proteínas que ajudam a fixar o DNA danificado. Isso faria sentido, já que os níveis de radiação na Estação Espacial Internacional podem ser até 48 vezes maiores do que na Terra. Dessa forma, suas células poderiam estar ocupadas consertando a lesão por radiação.
Por outro lado, outros genes ativados desempenham papéis no sistema imunológico. Mas quais mudanças eles desencadeiam, ainda não se sabe. Uma segunda descoberta importante é que o sistema imunológico de Scott respondeu apropriadamente no espaço. Por exemplo, a vacina contra a gripe administrada no espaço funcionou exatamente como na Terra. Um sistema imunológico totalmente funcional durante missões espaciais de longa duração é fundamental para proteger a saúde dos astronautas de micróbios oportunistas no ambiente da espaçonave.
A maioria dos genes alterados retornou ao normal após seis meses na Terra. No entanto, uma pequena porcentagem, não. O temor é que isso aumente o risco de câncer, já que eventualmente, as células podem começar a crescer descontroladamente. “É difícil ter certeza [de que consequências as mutações trarão], mas acredito que estaria associado a um aumento moderado no risco de câncer“, disse Peter Campbell, biólogo especializado em câncer do Instituto Wellcome Sanger, na Grã-Bretanha, ao The New York Times.
Algumas espécies de bactérias que prosperaram em seu intestino enquanto ele estava no espaço também tornaram-se raras novamente. O estranho alongamento dos telômeros desapareceu depois de menos de 48 horas na Terra.
Seu desempenho em testes cognitivos também diminui após seu retorno. “Ele ficou mais lento e menos preciso em praticamente todos os testes”, disse Mathias Basner, cientista cognitivo da Universidade da Pensilvânia, ao jornal americano The New York Times. É possível que alguma mudança biológica tenha causado esse fenômeno. Há também a possibilidade de ele simplesmente estar cansado ou menos motivado para desempenhar os testes, o que poderia impactar negativamente nos resultados.
Os aspectos únicos do Estudo dos Gêmeos criaram a oportunidade para pesquisas genômicas inovadoras, impulsionando a NASA em uma área de pesquisa sobre viagens espaciais envolvendo um campo de estudo conhecido como “ômicas”, que integra múltiplas disciplinas biológicas. Os efeitos a longo prazo da pesquisa, como a investigação em andamento dos telômeros, continuarão sendo estudados.
“[A próxima missão] não será uma replicação do que você viu no Estudo dos Gêmeos. Vamos aprender com isso e seremos mais inteligentes com relação às perguntas que fazemos. Há muitas coisas fascinantes para medir.”, disse Jennifer Fogarty, cientista chefe do Programa de Pesquisa Humana da Nasa aoThe New York Times.
A Nasa tem um rigoroso processo de treinamento para preparar os astronautas para suas missões, incluindo um regime de estilo de vida e trabalho completamente planejado enquanto no espaço, e um excelente programa de reabilitação e recondicionamento quando eles retornarem à Terra. O estudo comprova que graças a essas medidas e aos astronautas que as realizam tenazmente, o corpo humano permanece robusto e resiliente mesmo depois de passar um ano no espaço e sofrer tantas alterações.