Considerado o maior evento de mulheres negras da América Latina com passagem de ativistas e estudiosas como Angela Davis e Patricia Hill Collins, o Festival Latinidades — Festival da Mulher Afro-Latino-Americana e Caribenha — surgiu em Brasília em 2007, com o objetivo de popularizar e celebrar o Dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha (comemorado em 25 de julho) por meio de série de atividades que promovam diálogos políticos, sociais e culturais. Desde a criação, o Latinidades tinha tido apenas a capital federal como cenário. No ano passado, a produção havia anunciado a próxima edição do evento para julho de 2019. No entanto, o anúncio dos cortes de dois editais do Fundo de Apoio à Cultura (Fac) — que depois acabaram sendo retomados — teve um grande impacto, impedindo que o festival conseguisse manter a programação prevista para o DF.
“Desde 2017, uma equipe vem pensando tema e captação de parcerias para a realização da edição 2019. O projeto ficou em primeiro lugar no edital do Fundo de Apoio à Cultura, no entanto, o bloco inteiro foi cancelado pela Secretaria de Cultura, inviabilizando muitas iniciativas importantes para a cidade, entre elas, o Festival Latinidades. Em um momento político em que nossos direitos fundamentais estão sob ataque e ameaça constantes, deixar passar em branco o Festival Latinidades, enquanto plataforma potente de formação técnica política e de visibilidade para a produção de mulheres negras, não seria uma opção, ainda mais considerando o tema Reintegração de posse”, revela Jaqueline Fernandes, coordenadora-geral do Latinidades e uma das idealizadoras do festival.
Diante desse cenário, passou-se a buscar outras alternativas, até que São Paulo foi cogitada e aprovada. Assim, a capital paulista receberá a edição deste ano, que começa hoje (23/07, terça) e segue até sábado com programação no Centro Cultural São Paulo e na Casa Natura Musical, onde será a festa de encerramento.
“Imediatamente comecei a buscar apoio e acolhida em São Paulo. Ao longo dos 12 anos de festival, sempre recebemos caravanas de lá. Temos um público muito participativo que viaja para Brasília todos os anos. A maior parte vem de São Paulo e de Salvador, embora as nossas listas de presença nos comprovem participantes de todas as regiões. Consideramos, obviamente, também, as dificuldades de orçamento. Pensamos na logística: absolutamente todos os trechos nacionais e internacionais encontraram menores valores para Sâo Paulo. E por fim, foi determinante o apoio do Centro Cultural São Paulo e da Casa Natura, onde realizaremos as ações. Sem esquecer as redes e os movimentos de mulheres negras de São Paulo que estão nos acolhendo e em parceria para esta edição”, completa Jaqueline.
Temática
Tradicionalmente, o Latinidades escolhe a cada ano um tema. Em sua 12ª edição, o festival terá como norte a “Reintegração de posse”. “A população negra sempre deu contribuições inestimáveis para a humanidade. Sempre produziu significativo conhecimento técnico, científico, holístico, medicinal e cultural, sem os quais não teríamos chegado até aqui. Esta edição é sobre a consciência de tudo o que produzimos e para quais caminhos de futuro apontamos, a partir do momento em que reivindicamos para nós toda a riqueza que geramos”, explica a coordenadora geral.
Ao longo dos cinco dias de evento, o assunto será abordado em mesas de debate, apresentações musicais e artísticas, vivências e oficinas. Para isso, a produção do evento buscou estudiosos, artistas e ativistas de diferentes locais do Brasil e do mundo que tivessem relação com a temática. “A equação levou em conta as reflexões trazidas pelo tema “Reintegração de posse”, o mapeamento de possibilidades de subtemas a serem discutidos, a diversidade de representações, atuações e regiões, bem como os limites de recurso. A programação está potente e certamente a força do projeto e das redes que ele envolve neste momento nos dizem, também, sobre novos horizontes”, defende.
Entre os nomes que compõem a programação, estão a fotógrafa e historiadora norte-americana Deborah Willis; a professora de literatura Miriam Victoria Gomes (Argentina/Cabo Verde), o curador de moda Jaergenton Corrêa; a ativista feminista e estudiosa Ochy Curiel (República Dominicana/Colômbia); a professora estadunidense especialista em questões de gênero e raça Keisha-Khan Perry; o político Marivaldo Pereira, do Psol; a assistente social e ativista Lúcia Xavier, fundadora da ONG Criola; a líder indígena Sonia Guajajara; a rapper, modelo e influenciadora digital Preta Rara; e o youtuber e publicitário Spartakus Santiago.
De Brasília, como forma de homenagear a cidade de origem, também há representantes, como Thabata Lorena, que cresceu na periferia do DF e representa o Mercado Sul, e Adriana Gomes, que integra a Comuna Panteras Negras de Planaltina. “Brasília é nossa casa e onde o festival se materializou. É impossível dissociar a vivência de ser negra no Distrito Federal da criação e motivação para a realização do projeto e tudo aquilo que ele se tornou. Além disso, a nossa cidade tem uma produção artística e intelectual preta potente e que ainda precisa ser visibilidade para o resto do país e do mundo”, diz Jaqueline Fernandes ao falar da presença de brasilienses na programação paulista do evento.
DEPOIMENTO
“O festival já nasceu demandando uma agenda que extrapolava o DF. Embora tenhamos iniciado essa mobilização de forma local, logo nós percebemos o festival como uma poderosa plataforma nacional e internacional. Temos sido muito provocadas a compartilhar as tecnologias relacionadas a esse legado em outros estados e países e isso envolve o fato de o festival ter a dimensão que tem, ser multilinguagens, ter um olhar profissional e carinhoso de planejamento, curadoria e produção, ter fortalecido redes, gerado renda, visibilidade, outros projetos e oportunidades para a população negra, sobretudo para mulheres negras”