Entre os sons de martelos e serrotes na casa azul de esquina, da Quadra 2 do Paranoá, melodias cortam o ar com as notas da canção italiana Bella ciao. São os jovens do projeto Música e Cidadania que, mesmo em recesso, não param de ensaiar, enquanto o espaço é reformado. Em 12 anos de existência, a instituição ensinou gratuitamente a mais de mil alunos, a maioria deles de baixa renda (leia Saiba mais). Graças à dedicação, quatro deles foram premiados com bolsas de estudos para passar um ano junto à orquestra de Rouen, na França.
Eles passaram uma semana frequentando a oficina do maestro francês Claude Brendel que, ao final do curso, selecionou os melhores para as vagas no conservatório onde é diretor. A bolsa, no entanto, cobre apenas os custos das aulas. As demais despesas deverão ser arcadas pelos músicos e eles calculam que em torno de R$ 35 mil serão necessários para cada um. O valor inclui passagens, hospedagem, deslocamento na cidade e alimentação.
Os quatro foram informados da conquista na semana passada e não querem deixar a oportunidade passar. Eles estão se organizando para fazer uma vaquinha on-line, pequenos concertos e qualquer outra atividade que ajude a levantar o dinheiro. Samuel Araújo, 21 anos, toca contrabaixo acústico e não poderia estar mais feliz. Ele e a colega Elissandra de Souza, 20 anos, se aperfeiçoaram no mesmo instrumento. “É uma oportunidade única, mas muito difícil. A maior dificuldade é o dinheiro, além de (não saber) falar francês. Comecei a estudar agora, depois que soube do resultado”, declara o rapaz.
Samuel cresceu no Paranoá e, graças a uma amiga que estudava violino, descobriu o projeto e se encantou. “Eu tocava um pouco de bateria na igreja, mas não gostava muito e queria aprender um instrumento menor. Minha ideia no começo era o baixo elétrico”, relembra. A ideia, contudo, não vingou, porque ele acabou se apaixonando pelo contrabaixo.
Crescimento
Nos primeiros cinco anos, o Música e Cidadania funcionava no Varjão, em endereços diferentes: associação comunitária, escola e creche. Em 2012, passou a ocupar uma casa na Quadra 2 do Paranoá. A mudança não desmotivou os jovens, que acompanharam os professores. É o caso do clarinetista Luan Almeida, 19 anos. Ele começou a participar em 2007 e, desde então, não parou mais. Agora, é um dos bolsistas escolhidos pelo maestro Claude Brendel.
Recém-formado no curso técnico da Escola de Música de Brasília (EMB), ele conta que ficou perplexo com a conquista da bolsa. “Eu nem tinha intenção de conseguir. Decidi fazer para aumentar o meu nível, estava focado em fazer o processo de imersão e me esforçar para tirar o máximo dali”, lembra. “Quando me chamaram, eu nem acreditei. Fiquei a noite toda pensando ‘como assim?’. Essa bolsa abre várias possibilidades. A gente pode ganhar um caminho para estudar e continuar lá fora.”
Ele lembra que a vida de músico no Brasil nem sempre é fácil. “É um ramo muito fechado, se você não for muito bom, não terá espaço. Muita gente acaba desistindo do sonho, porque não conseguiu aumentar a rede de contatos no meio”, pondera. “Quem recebe uma oportunidade assim de ir para fora tem de agarrar”.
De aluna a mestre
Ganhar a bolsa não foi motivo para os músicos descansar. Exemplo disso é Talía Vieira, 20 anos. Com a flauta transversal dela, a moça está se apresentando, nesta semana, em um festival na cidade de Santa Maria, no Rio Grande do Sul. Ainda assim, ela não deixa de pensar no novo desafio. “Estou muito animada, é um sonho. Sempre quis ir para a França, porque é uma escola tradicional de flauta, então sei que será uma experiência muito especial e motivadora”, comemora.
Moradora do Itapoã, ela ingressou no projeto aos 14 anos, sabendo apenas um pouco de violão. À medida que ia aprendendo a ser flautista, a menina que antes queria ser médica descobriu uma nova vocação. “Vi que queria a música para a minha vida e, quando decidi isso, foi libertador. Eu me senti transformada.” Talía cursa licenciatura em música na Universidade de Brasília (UnB) e pensa em, depois que terminar, retornar à França para um mestrado.
Hoje, ela é professora no mesmo projeto onde aprendeu. “Para mim, é gratificante retribuir tudo o que recebi. É um prazer enorme dar aula, porque vejo a transformação que aconteceu em mim se repetindo nos outros”, emociona-se. “Aprendemos a ter empatia, respeito e disciplina. Passamos a ajudar mais o próximo e olhar os colegas com apreço. A música faz isso, e eu vejo nos meus alunos.” Elissandra de Sousa não pôde falar com o Correio por estar doente no momento da reportagem.
Saiba mais
O Música e Cidadania foi fundado pelo capitão do exército Valdécio Fonseca, 54 anos, hoje aposentado. A ideia nasceu da vontade de tirar a criançada da rua e ensinar o poder transformador da música. “Começamos pequenininhos, mas foi dando certo e formamos profissionais do ramo”, comemora. Graças a uma doação, o projeto hoje conta com uma “instrumentoteca”, repleta de violinos, contrabaixos, percussões, clarinetas e muito mais. O trabalho voluntário dos pais de alunos ajuda a manter o lugar funcionando. “Eles montam armários, pintam paredes e ajudam como podem. Vemos esses meninos crescendo aqui. Somos uma grande família”, destaca Valdécio.
Como Ajudar
Quem quiser contribuir com o dinheiro para que os jovens possam iniciar os estudos na França, pode entrar em contato com o projeto social pelo telefone: 3369-2014.