Cada vez mais comuns na pauta legislativa, o número de propostas de emendas à Constituição (PECs) saltou 190% na última década, se levadas em conta as iniciativas ainda em tramitação na Câmara dos Deputados e no Senado.
Ambas as Casas têm hoje 1.344 emendas passíveis de aprovação. O número é quatro vezes maior que os 250 artigos da Carta de 1988 e, segundo especialistas ouvidos pelo jornal O Estado de S. Paulo, representa uma ameaça ao conjunto de direitos e deveres que caracterizam o Estado brasileiro há mais de 30 anos.
Não que a Constituição não possa ser mudada, pelo contrário. Três décadas após sua promulgação, mudanças com a finalidade de acompanhar a evolução da sociedade são salutares e recomendadas.
A advogada constitucionalista Vera Chemim cita o escritor alemão Ferdinand Lassalle para ressaltar a importância dessa atualização no texto constitucional. “Sem ela, o texto constitucional corre o risco de se tornar ineficaz ou, como diria Ferdinand, uma mera folha de papel”, afirmou.
É a hipermutabilidade, portanto, que chama a atenção, observa o diretor da Faculdade de Direito da USP Floriano de Azevedo Marques. Isso porque, além das propostas em tramitação, 113 já foram promulgadas — a última delas na semana passada, resultado da aprovação da PEC dos Precatórios.
O professor avalia o movimento atual como uma tentativa promovida pelas forças políticas no poder de constitucionalizar suas conquistas para assegurar que elas se tornem imutáveis.
“Um estudo mais detalhado sobre as emendas propostas por deputados, especialmente, vai ressaltar que muitas delas pretendem constitucionalizar direitos que integram suas pautas”, afirmou Azevedo Marques.
“Existe uma pulsão, uma vontade, uma tendência de os parlamentares quererem constitucionalizar direitos considerados importantes para o seu mandato. No Brasil, direito bom é direito constitucionalizado. E isso é errado, principalmente porque algo que seja circunstancial se torna ultrapassado com o tempo.”
A PEC 13/2021 é um exemplo claro desse movimento circunstancial. Já aprovada pelos senadores e tramitando hoje na Câmara, ela livra de punição prefeitos que não tenham aplicado no mínimo 25% da receita em educação. Altera o texto constitucional por apenas dois anos — por causa da pandemia de covid-19.
Vera Chemim explica que deputados e senadores têm o chamado “poder derivado”, estabelecido pela própria Constituição.
“Eles têm realmente competência para reformar o texto, mas com ressalvas e limitações. Não se pode ficar mudando a Constituição ao sabor do momento. E é o que está acontecendo. Há a edição de emendas para atender a interesses políticos e ideológicos”, afirmou.
O professor de Direito Constitucional e membro da Academia Brasileira de Letras Joaquim Falcão entende que a banalização do instrumento prejudica o país sob diversos aspectos.
“Cria insegurança jurídica e instabilidade econômica. É um sistema que torna o Brasil improvável. Qualquer análise hoje tem de perceber o que acontece e o que não aparece. Essas propostas estão lá, como um vírus que não se sabe se vai se desenvolver ou não. É a contaminação pela incerteza.”
E essa incerteza é reforçada a cada novo mandato, quando PECs que não evoluíram podem ser desarquivadas, como ressalta o consultor político Antonio Augusto de Queiroz.
“Essa quantidade absurda de emendas é resultado de uma iniciativa legislativa coletiva. Basta um dos 172 parlamentares que assinaram a proposta inicialmente pedir seu desarquivamento para que ela volte a tramitar. Em função disso, muitas dessas 1.344 são repetidas ou tratam do mesmo assunto”, afirmou.
O que também se perdeu foi o cumprimento do rito estabelecido para aprovar uma emenda constitucional. Em alguns casos, as etapas têm sido atropeladas para acelerar a votação.
O excesso de emendas ainda sob análise do Congresso não tem comparativo no mundo nem justificativa plausível, segundo os especialistas ouvidos pelo Estadão, mas quem as defende pode usar ao menos um argumento com propriedade, conforme os mesmos estudiosos: a Carta brasileira é exaustivamente detalhista e analítica do ponto de vista do direito.
Fonte: Redação Oeste