Esta volta às aulas já está sendo diferente para uma parte dos estudantes do ensino médio, nas redes pública e privada, e não só por causa das medidas sanitárias relacionadas à pandemia.
Começou a ser implementado neste ano o chamado novo ensino médio, uma mudança que tenta fazer frente a antigos desafios dessa etapa de ensino: a desconexão e o desinteresse de uma parcela significativa dos jovens, problemas que se intensificaram na pandemia e que resultam em altos índices de evasão e atraso escolar.
Em 2018, uma estimativa do movimento Todos Pela Educação apontou que quatro de cada dez jovens brasileiros de 19 anos não haviam completado o ensino médio.
Na pesquisa Pnad Covid, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) estimou que 407,4 mil brasileiros de 15 a 17 anos não estavam matriculados na escola no segundo trimestre do ano passado.
Neste ano, o novo ensino médio começa apenas para os alunos do primeiro ano, segundo cronograma definido pelo Ministério da Educação. Para o segundo ano, a mudança começará no ano que vem e, para o terceiro ano, em 2024.
Até o momento, 22 Estados já têm referenciais curriculares aprovados e homologados para começar a colocar o novo ensino médio em prática nas redes estaduais de ensino, segundo o Movimento Pela Base Nacional Curricular.
São eles: Amazonas, Amapá, Ceará, Distrito Federal, Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Minas Gerais, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Paraíba, Pará, Pernambuco, Piauí, Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Roraima, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Sergipe e São Paulo.
Outros cinco (Acre, Tocantins, Alagoas, Bahia e Rondônia) ainda aguardam aprovação ou homologação.
Confira a seguir o que começa a mudar no ensino médio, como essas mudanças vão impactar o dia a dia – e o futuro – dos alunos e quais as pendências e polêmicas envolvendo essa implementação.
1 – O que os alunos vão estudar no novo ensino médio?
Até agora, o ensino médio do país tinha, ao longo de três anos, um único itinerário igual para todos os alunos, organizado em 11 disciplinas (Língua Portuguesa, Matemática, etc).
Com o novo ensino médio, essas disciplinas passam a ser organizadas em quatro áreas de conhecimento, previstas na Base Nacional Comum Curricular:
– Linguagens
– Ciências da natureza
– Ciências humanas e sociais
– Matemática
Uma parte desse ensino (ou 60% do total da carga horária do ensino médio) será igual para todos os alunos, na expectativa de que todos desenvolvam as competências básicas esperadas para jovens dessa idade.
Mas uma outra parte do tempo do estudo (ou 40% da carga horária) será de acordo com a escolha do aluno, a partir do seu interesse. São os chamados itinerários formativos.
2 – O que são os itinerários formativos?
Os itinerários formativos são a parte flexível do currículo do ensino médio, ou seja, a parte em que o estudante poderá estudar uma área de conhecimento que tenha a ver com seus interesses.
Ele poderá escolher, em tese, entre itinerários nas quatro áreas de conhecimento mencionadas acima (linguagens, ciências da natureza, ciências humanas e sociais e matemática) ou um ensino técnico, ou ainda um modelo integrado, que combine mais de uma área.
Mas tudo dependerá de quantos itinerários cada escola ou cada rede poderá ofertar. A preocupação é que escolas menores ou redes com menos estrutura não sejam capazes de oferecer mais do que o mínimo de dois itinerários formativos para seus alunos escolherem.
Na prática, então, é possível que o aluno de uma rede menos estruturada não tenha, de fato, tanta opção.
E especialistas temem que isso (e em outros pontos que detalharemos a seguir) aumente as desigualdades entre redes mais ou menos estruturadas, e também entre as redes privada e pública.
“Existem muitos municípios que têm uma única escola de ensino médio, que não vão poder oferecer tanta escolha assim para seus alunos”, diz à BBC News Brasil Anna Helena Altenfelder, presidente do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec).
Por outro lado, Estados que fizeram investimentos maiores na implementação do novo modelo, como São Paulo, oferecem dez opções de itinerários.
“A preocupação é que o novo ensino médio possa acirrar desigualdades não pela reforma em si, mas pelos desafios de sua implementação, que afetam as escolas mais vulneráveis”, agrega Altenfelder.
Além disso, diz ela, as redes precisarão de apoio para formular itinerários que sejam de fato ricos e interdisciplinares: “Se ficar tudo na mão das escolas, pode ser um fator de precarização (do projeto)”.
3 – Quais disciplinas são obrigatórias no novo ensino médio?
Somente as disciplinas de Língua Portuguesa e Matemática serão obrigatórias nos três anos de ensino médio. No entanto, como a escolha dos itinerários só é exigida a partir do segundo ano, a tendência é que o primeiro ano tenha aulas similares à base do modelo antigo.
Ao mesmo tempo, os itinerários contam não só com disciplinas novas, mas também com planos de estudo de História, Química, Biologia, Artes, entre outros assuntos.
“A escola também pode oferecer as eletivas – mais aulas de algum desses assuntos ou de temas diversos como debate público, tecnologia e educação financeira. Assim os alunos já podem ter experiências que os ajudam a determinar seus interesses” diz Katia Smole, diretora do Instituto Reúna e presidente do Conselho Estadual de Educação de São Paulo (CEB).
3 – Quais disciplinas são obrigatórias no novo ensino médio?
Somente as disciplinas de Língua Portuguesa e Matemática serão obrigatórias nos três anos de ensino médio. No entanto, como a escolha dos itinerários só é exigida a partir do segundo ano, a tendência é que o primeiro ano tenha aulas similares à base do modelo antigo.
Ao mesmo tempo, os itinerários contam não só com disciplinas novas, mas também com planos de estudo de História, Química, Biologia, Artes, entre outros assuntos.
“A escola também pode oferecer as eletivas – mais aulas de algum desses assuntos ou de temas diversos como debate público, tecnologia e educação financeira. Assim os alunos já podem ter experiências que os ajudam a determinar seus interesses” diz Katia Smole, diretora do Instituto Reúna e presidente do Conselho Estadual de Educação de São Paulo (CEB).
4 – O que é o Projeto de Vida?
O novo ensino médio também amplia para todos os alunos algo que estudantes de escolas de tempo integral já aplicavam: o chamado Projeto de Vida.
O objetivo é que o aluno possa conversar com seu educador a respeito de como se enxerga no futuro, quais são seus interesses e sonhos e formas possíveis de alcançá-los. Isso deve, inclusive, ajudar os jovens na escolha de seus itinerários.
“Sendo um espaço organizado de reflexão, é algo bem importante para essa faixa etária, para que ela possa pensar em seu papel social e no mundo do trabalho”, afirma Altenfelder, fazendo uma ressalva: “Essa reflexão não pode servir apenas para moldar o aluno ao mercado de trabalho, mas sim para ajudá-lo a fazer uma reflexão crítica de seu projeto de vida próprio. É preciso que a autoria seja de fato do aluno”.
5 – O tempo de aula vai aumentar?
Sim: haverá ao menos uma hora por dia a mais de aula. Antes, a carga horária era de 800 horas/aula por cada ano do ensino médio, ou seja, 4 horas por dia.
Agora, a carga horária aumenta para mil horas de aula por ano, ou 5 horas por dia.
6 – Como fica o Enem com o novo ensino médio?
Ainda não se sabe quais serão as mudanças na prova do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem).
De acordo com Smole, a tendência é ter um primeiro dia de avaliação de formação geral básica e que no segundo, a avaliação seja focada em diferentes áreas de conhecimento. Assim, existiriam modelos de prova distintos a serem escolhidos.
“Temos que esperar, porque a discussão ainda está em curso, mas a mudança efetiva no Enem só vai ocorrer em 2024. No entanto, o novo modelo deve, por lei, ser adotado agora. O que não pode acontecer é que as escolas deixem para mudar somente em 2024, porque não terão tempo de implementar todas as mudanças.”
7 – Como vai ser o ensino técnico?
Ao finalizar o ensino médio, o aluno que escolher o ensino técnico receberá, além do certificado de estudo regular, também o diploma técnico ou profissionalizante.
Na teoria, o intuito é que esse modelo contribua para combater os altos índices de desemprego entre jovens e sirva de porta de entrada para o mercado de trabalho.
No entanto, o principal problema, na opinião de Fernando Cássio, professor de políticas educacionais na Universidade Federal do ABC (UFABC), será a qualidade do ensino proposto, que ele considera precária.
“Se olharmos para os alunos do ensino superior público hoje, encontraremos uma grande parcela que passou pela escola técnica”, diz ele, que também integra a Rede Escola Pública e Universidade (REPU) e o comitê diretivo da Campanha Nacional pelo Direito à Educação..
“O que acontece é que a escola técnica no Brasil, com processo seletivo e vagas limitadas, já é para poucos, e o que está se propondo (com o novo ensino médio) não é uma formação técnica, mas uma formação profissional precarizada.”
“Em São Paulo, o curso terá duração de 900 horas – 300 no 2º ano e 600 no 3º ano. Já um curso técnico como conhecemos tem cerca de 1800 horas. Essas (do novo ensino médio) são versões reduzidas que imitam o modelo original, mas sem recursos, já que são feitas na própria escola.”
Sobre a intenção de que os alunos façam atividades práticas dentro das empresas e em laboratórios externos, Cássio avalia que não há estrutura para atender a todos. “Isso só vai acontecer com pequenos grupos, é inviável oferecer para todos os alunos. Só no ensino médio do estado de São Paulo há 1 milhão e 100 mil estudantes.”
A reforma em curso, do ponto de vista do educador, não é ideal para manter os jovens estudando e engajados.
“O que o tira da escola não é a falta de interesse nas aulas. É a pobreza, são os problemas estruturais da educação. É muito fácil apontar o dedo para a escola e dizer que ela é ultrapassada, enquanto na rede privada tudo segue igual. Para os alunos mais ricos, as eletivas já são opções como atividades extracurriculares, mas eles continuam estudando todas as disciplinas.”
Uma das preocupações é se, com esses empecilhos em potencial e com a ênfase no ensino técnico, o novo ensino médio pode acabar afastando ainda mais os alunos mais pobres do ensino superior, deixando este ainda mais elitizado.
Katia Smole acha que não. “Nossa escola atual já é muito excludente e, para mim, é impossível ficarem mais distantes (do ensino superior) do que já estão. No Brasil, 25% dos jovens em idade produtiva que não estudam nem trabalham. Mesmo antes da pandemia, 40% dos estudantes da rede pública não acham que conseguiriam fazer o vestibular”, diz ela, reforçando que a ideia não é que os jovens deixem de entrar na faculdade, mas, que entre outros benefícios, mantenham-se interessados no ensino, sem desistir de ir à escola.
Para a presidente do CEB, é natural que os pais questionem e se sintam inseguros diante do novo modelo. “Afinal, nenhum de nós vivenciou uma escola parecida no Brasil, embora já existam modelos similares em outros lugares do mundo. Só que não acho que devemos deixar de implementar. É preciso ousar, o jovem do século 21 precisa de uma escola nova.”
Capacidade financeira, infraestrutura e mão de obra qualificada são principais desafios
A mudança exige investimento. “O protagonismo do Ministério da Educação precisa ser grande, repassando apoio para os estados por meio do acordo financeiro feito com o Banco Mundial entre 2017 e 2018. Há Estados que têm investido muito, como São Paulo, Pernambuco e Mato Grosso do Sul. Outros precisarão de mais de ajuda”, afirma Smole.
Para os professores e gestores de escolas, o MEC disponibilizou um site com guias de formação. Alguns Estados também têm oferecido parcerias com universidades como um meio de complementação do currículo dos profissionais.
Mas a formação adequada de professores para dar conta de itinerários de ensino potencialmente bastante distintos entre si também é uma preocupação de críticos quanto às desigualdades no ensino médio. Afinal, redes particulares ou mais estruturadas poderão, em tese, contar com mão de obra mais capacitada, o que enriqueceria muito mais a experiência educativa dos alunos – em comparação com redes e escolas com menos oferta de mão de obra.
Para Anna Helena Altenfelder, do Cenpec, há ainda mais desafios pela frente: primeiro, o fato de o novo ensino médio começar a ser implementado justamente em um ano eleitoral, o que pode resultar em trocas não só de governadores, mas também de secretários da Educação.
Em segundo lugar, haverá dificuldade de implementação porque “não foi feito um diálogo com todos os atores envolvidos (no novo ensino médio), como professores, gestores e também os alunos. Então falta consenso entre os diferentes setores. (…) É uma mudança muito grande – de lógica, de condições e de cultura de ensino, e isso não é fácil de se implementar.”
Fonte: Correio Braziliense