Mais do que mero preconceito, a gordofobia — junção dos termos “gordo” e “fobia” (medo ou aversão, em latim) — se tornou um problema para a sociedade e uma pauta recorrente nas redes sociais, onde as vítimas denunciam a violência sofrida. O debate, que antes costumava ser apenas sobre saúde, leva a batalhas mais complexas, inclusive com trabalhadores que recorrem à Justiça para garantir o direito de existir como bem entenderem.
Os comentários indesejados um dia encontraram resposta com a assistente de Recursos Humanos Valeska Macedo, de 35 anos. Ela acaba de vencer uma ação movida no Tribunal de Justiça do Distrito Federal, pela qual foi indenizada em R$ 12 mil pela empresa de ônibus Viação Piracabana, após ter sido constrangida pelo cobrador e o motorista na capital federal.
“Vamos deixar claro que nunca foi pelo dinheiro, mas pelo constrangimento e pelo desapontamento pelo qual passei e por que nem todo profissional tem a mesma postura e respeito pelos usuários do serviço público”, explica Valeska. “Sou muito feliz como eu sou, mas chega uma fase em que as coisas vão se dificultando, pois o preconceito da sociedade é muito grande”, explica.
A 5ª Turma Cível do TJDFT manteve, por maioria de votos, a condenação que obriga a empresa de transporte a pagar por danos morais. Valeska estava acompanhada do irmão de oito anos e, após pagar a passagem, pediu ao cobrador que girasse a roleta e autorizasse seu embarque pela porta traseira (de desembarque), algo comum a passageiros que sofrem de obesidade e têm dificuldade de atravessar a catraca.
De acordo com Valeska, o cobrador negou a solicitação, assim como o motorista. “Os dois foram sarcásticos, mesmo após a intervenção de outros passageiros”, explica a vítima, que foi obrigada a fazer toda a viagem em pé, pois os demais assentos estavam ocupados por idosos. Além disso, passou todo o percurso preocupada com o irmão menor que ficou sozinho na parte traseira do ônibus.
Diante da situação, a assistente conta que ficou “desnorteada, triste e constrangida”, e diz que a família a aconselhou a processar a Viação Piracicabana, responsável pelo transporte no caso. “Todos ficaram revoltados no dia, me incentivando a processar a empresa e lembro que, na época, falei que não iria, pois não ia adiantar nada.”
Valeska não perdeu peso, mas ganhou coragem, bem como Mariana Mussi dos Santos Infanti, produtora cultural de 28 anos, cineasta e diretora do documentário Gordos não vão para o céu — qual o poder de escolha de uma pessoa gorda?. Mariana já enviou mais de 300 currículos, mas nunca obteve retorno.
“Nunca tive meu primeiro emprego com carteira assinada”, explica a produtora. “Somente agora tive a oportunidade de ser eleita para o Conselho de Cultura da Prefeitura de Santos, mas não tenho uma cadeira adequada para trabalhar”, explica, ao ressaltar que o preconceito é um acompanhante da vida toda. “O documentário foi o meu trabalho de conclusão de curso. Durante a apresentação, fui duramente criticada por pessoas que colocaram em xeque a valia do tema e se a minha história era importante”, relata.
Sem um trabalho remunerado de carteira assinada, Mussi precisa ser criativa. Nos últimos anos, criou o site GeekBlast.com.br e foi revisora da GameBlast, uma revista eletrônica, ambos os ambientes virtuais dedicados à cultura nerd. “Mas todos voluntários. Inclusive, uma das participantes do documentário é jornalista, na faixa dos 40 anos, e nunca teve seu primeiro emprego.”
A jornalista amazonense Marice Rocha experimenta uma realidade diferente aos 41 anos, noiva para o primeiro casamento. “Quando vejo pessoas falando da idealização de corpos perfeitos, acho tão pequeno ignorar a essência do ser em relação ao ideal de corpo. Sou uma mulher preta e gorda. A autoestima não foi um processo criado com os aprendizados da vida. Desde que me entendo por gente, tive uma relação de amor comigo mesma”, ressalta.
Marice conta que o amadurecimento a deixou mais fortalecida e empoderada, até em relação ao que vestir. “Nunca fui das cores sóbrias, sempre gostei do colorido, do estampado, do biquíni, do sexo com luzes e espelhos e evolução nas pistas de dança. Se isso, de alguma forma, incomoda alguém, o problema é desse alguém e não meu. Simples assim!.”
Mercado de trabalho
O Tribunal Superior do Trabalho (TST) registra aumento considerável do número de pessoas contra empresas por causa da gordofobia. Há 414 processos tramitando na Corte, dos quais 328 deram entrada nos últimos dois anos.
Apesar de o Brasil não ter uma lei específica para punir quem pratica gordofobia, fica claro na Constituição brasileira que ninguém pode sofrer discriminação por nenhuma característica ou questão pessoal. O trabalhador que sofre qualquer tipo de preconceito no ambiente corporativo pode ter direito à indenização por dano ou assédio moral.
O caso de Valeska, que foi constrangida quando usava o transporte público para ir ao trabalho, levou a assistente de RH a questionar o treinamento recebido pelos profissionais. Valeska sugere que os motoristas e cobradores participem de cursos para fortalecer o caráter humano. “Seria muito bom se eles tivessem um treinamento sobre direitos e deveres, leis e diretrizes e também uma aula de humanidade”, aconselhou a assistente.
Rayane Souza, ativista contra a gordofobia, e a advogada Mariana Vieira se juntaram com o intuito de combater a gordofobia e desenvolveram o projeto Gorda na Lei. Segundo a ativista, as pessoas gordas sofrem diversos empecilhos e esbarram em barreiras não só sociais como também estruturais. No mercado de trabalho, Rayane destaca que é preciso considerar dois pontos que dificultam o combate do preconceito.
Ela ressalta que pessoas gordas têm uma dificuldade muito grande de conseguirem empregos. “O corpo gordo, por muitas vezes, é associado à preguiça, e estes estereótipos só reforçam o preconceito diminuindo, assim, a chance de contratação.” Cientes da dificuldade de contratação, essas pessoas têm medo de retaliações ou demissões, caso combatam a gordofobia, e acabam se calando.
“É urgente frisar que a gordofobia no ambiente de trabalho enseja ações trabalhistas. Temos visto que a cada dia o judiciário, quando demandado, tem entendido gordofobia como assédio moral e condenado esta conduta.”
Outro aspecto citado pela ativista é a importância de que as empresas tenham uma ouvidoria, preparada não só para acolher como caminhar junto ao funcionário e um código de conduta proibindo expressamente a prática de preconceitos.
Fonte: Correio Braziliense