Jacarezinho, 6 de maio de 2021. Uma operação policial termina com 28 mortos e se torna a operação mais letal da história do Rio de Janeiro. Um ano depois, o que desencadeou tanta violência ainda não está claro. Nesta quinta (6/5), o Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ) encerrou as ações da Força-Tarefa instituída para apurar o caso com a denúncia de mais dois policiais acusados de fraude processual e por forjar o cenário do crime. Das 28 mortes, 24 foram arquivadas. O resultado, reflete, segundo especialistas, uma dinâmica comum nas comunidades do Rio de Janeiro.
Só em 2020, 64% dos baleados no estado foram atingidos durante ações/operações policiais, segundo o Instituto Fogo Cruzado. Jacarezinho foi o local que mais sofreu com massacres. De acordo com uma pesquisa feita pelo Grupo de Estudos de Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (UFF), foram 112 mortes em 19 chacinas entre 2007 e 2021.
Segundo Michel Misse, sociólogo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenador do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana (NECVU/UFRJ), os dados refletem a realidade de como a violência é tratada dentro das favelas. “Já faz parte da subcultura policial do Rio de Janeiro, já vem de muito tempo, desconsiderar o criminoso como cidadão. O suspeito é tão desconsiderado que se permite matar”, afirma.
De acordo com Ignacio Cano, coordenador do Laboratório de Análise da Violência (LAV) da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), a forma como as operações são organizadas levam ao resultado de mortes. “É planejada com um poder de fogo muito grande, o número de mortos só pode ser mais baixo ou mais alto. No Jacarezinho foi mais escandaloso devido a determinação do Supremo Tribunal Federal. É uma síntese que com isso em vigor se produza a operação com o maior número de mortes”, lembra. Em 2020, o STF determinou a suspensão de operações policiais nas comunidades durante a pandemia.
Para Michel, é necessário mudar a mentalidade de que “bandido bom é bandido morto”. Em 2018, o então governador do Rio de janeiro, Wilson Witzel, causou polêmica ao afirmar que “a polícia vai mirar na cabecinha e… fogo”. Para Michel, a fala só reflete um pensamento comum na população. “Uma parcela significativa da população fluminense dá respaldo para esse tipo de comportamento policial. Apoiam a tortura e a morte”, frisa.
Outro problema que Michel destaca é a impunidade em torno dos casos. “Nós apuramos os casos de letalidade policial e estamos acompanhando os processos para ver o que dar e não dá em nada. O sentimento de impunidade também ajuda a reproduzir esses comportamentos. Tem policiais com 30 autos nas costas e que continua na rua”, explica.
Segundo Marcos Rezende, fundador do Coletivo de Entidades Negras (CEN) e ex-conselheiro de Segurança Pública do Ministério da Justiça, as grandes atingidas por essa lógica são as populações negras e periféricas, o que reflete o racismo estrutural no país. Relatório da Rede de Observatórios da Segurança (ROS) revelou que a polícia mata uma pessoa negra a cada quatro horas em pelo menos seis estados: Bahia, Ceará, Piauí, Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo. “Estabeleceu-se no Brasil uma prática de normalizar essas violências sobre alguns corpos, geralmente, negros e periféricos. Colocamos na conta dos policiais, mas na verdade existe uma construção de todo um modus operandi que acha normal o julgamento de pessoas negras pela mídia e depois o encarceramento pela Justiça. Esses policiais também são negros e da periferia. São os capitães do mato modernos”, destaca.
O Jacarezinho, que nasceu de um quilombo, só reflete essa lógica. Após a operação mais letal do Rio, o governador Cláudio Castro (PL) anunciou a reformulação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) e assim lançou o Cidade Integrada. O projeto teve como pioneiro a comunidade da zona norte. Para Ignácio, toda tentativa de resolver a situação da violência de forma pacífica é positiva. “Foi um plano feito às pressas, mas é melhor que quando eles dizem que tem que “atirar na cabecinha”. Mas a gente não tem muita esperança que mude o cenário. Mas pelo menos o governo se deu ao trabalho de formular uma política”, ressalta.
Para Marcos Rezende, é preciso fazer várias mudanças para que os resultados sejam diferentes. “É preciso um investimento em educação, favorecer a formação de policiais, garantir um emprego digno e um suporte psicológico”, afirma.
Casos pelo Brasil
Em abril deste ano, 119 instituições que defendem os direitos humanos mandaram para a Organização das Nações Unidas (ONU) e à Corte Interamericana de Direitos Humanos (Cidh) uma denúncia do caso de violência policial em Porto de Galinhas da morte da menina Heloysa Gabrielly, de 6 anos, baleada durante uma ação da Polícia Militar para que as instituições cobrem uma resposta do governo federal.
Também em abril, a deputada estadual Renata Souza (PSol-RJ) pediu à ONU para pressionar o governo federal sobre a violência policial no Rio de Janeiro. No documento, ela cita o assassinato de Jonathan Ribeiro, de 18 anos, que um policial militar assumiu ter atirado sem a ocorrência de confronto porque ele estaria vendendo drogadas e portando a réplica de um revólver.
Em março, comitiva do Coletivo de Entidades Negras (CEN) denunciou à Organização dos Estados Americanos (OEA) e ao Congresso americano a violência policial nas periferias do Brasil. No documento, eles citam mas chacinas nas comunidades do Jacarezinho e do Salgueiro, no Rio de Janeiro, e no bairro da Gamboa, na Bahia.
Câmeras nas roupas
Uma possível solução para melhorar a situação é a implantação de câmeras nas roupas dos agentes. Em São Paulo, o sistema já está sendo usado desde 2021. E de lá para cá os dados mostram uma melhora na letalidade. Segundo levantamento da Polícia Militar de São Paulo, os batalhões que adotaram o sistema de câmeras de áudio-vídeo pessoais tiveram uma redução de 87% nas ocorrências de confronto. Em junho, 18 batalhões registraram primeira vez letalidade zero.
“O programa é um dos responsáveis pela queda da letalidade policial de São Paulo, se isso for adotado no Rio pode se ter resultados positivos”, destaca o professor Michel. Além disso, Ignácio ressalta que a adoção do dispositivo é bom para os dois lados. “Os dados de São Paulo são muito bons. Em alguns lugares do mundo funcionou e em outros não. Em São Paulo houve uma redução importante no número de policiais mortos. Quando tem algum controle morrem menos civis e menos policiais”, destaca.
Opinião também compartilhada por Marcos Rezende. Segundo ele, além de tudo, com as câmeras, os policiais podem mostrar o que realmente aconteceu e evitar de serem acusados de algo que não ocorreu. “Os bons policiais ficarão felizes de poder provar que estão sendo julgados erroneamente. Eles vão poder provar sua inocência”, diz.
Fonte: Correio Braziliense