Depois de passar semanas diante do temor de protagonizar um fiasco e de ameaças de boicote, o governo do americano Joe Biden chega à 9ª edição da Cúpula das Américas, em Los Angeles, com a expectativa de fazer do evento uma virada na política internacional dos Estados Unidos, apesar das baixas e polêmicas entre os participantes.
Os americanos veem o evento como uma oportunidade para “construir uma nova agenda e um novo entendimento do que é importante para o continente americano hoje”, afirmou à BBC News Brasil o ex-embaixador dos EUA para o Brasil Thomas Shannon.
Mas não só. Diante da competição com a China por influência na área e da tensão com a Rússia, em meio à Guerra da Ucrânia, a Cúpula representa para os americanos a chance de unir o continente em torno da liderança do democrata Biden, que proporá ao menos cinco declarações conjuntas a seus pares, com políticas e planos para temas como conservação ambiental, mudanças climáticas, democracia e resiliência à pandemia. Migração e fortalecimento de cadeias de produção e suprimentos também estarão na mesa.
Em seus propalados objetivos, a Cúpula das Américas organizada pelos americanos ecoa noções da chamada Doutrina Monroe, com seu ideal de a “América para os Americanos”. O ideário, lançado em 1823, para pregar a não interferência dos europeus sobre suas ex-colônias no continente, recebeu diferentes leituras ao longo dos séculos, mas sempre se resumiu à noção de que os americanos buscavam primazia (ou interferência) política no continente.
“Essa retórica ainda existe, mas na prática os EUA perderam as principais narrativas na região, sua legitimidade está abalada com a crise à sua própria democracia e o governo não possui meios para competir com os chineses em investimentos em infraestrutura e inovação, o que ficou evidente com o caso da Huawei”, afirma Oliver Stuenkel, professor de relações internacionais da Fundação Getúlio Vargas, mencionando a gigante tecnológica chinesa que terá importância nas redes de 5G de países da região, como o Brasil, apesar das tentativas dos americanos de fazer com que os latinos excluíssem a Huawei de suas operações.
A julgar pelo acidentado percurso que leva parte dos líderes da região à cidade da Califórnia na segunda semana de junho, os resultados simbólicos e práticos do evento para os EUA seguem sendo dúvida.
A principal ausência no evento, o presidente mexicano Andrés Manuel Lopez Obrador, conhecido como AMLO, cumpriu sua promessa de não participar da Cúpula se os governos de Nicarágua, Cuba e Venezuela não fossem convidados a comparecer também.
Os EUA se recusaram a enviar convites às equipes do nicaraguense Daniel Ortega, do cubano Miguel Díaz-Canel e do venezuelano Nicolás Maduro, a quem Washington qualifica como ditadores e violadores dos direitos humanos. Nos EUA, as diásporas cubana e venezuelana são politicamente poderosas e decisivas para disputas como as eleições parlamentares de meio de mandato, que acontecerão em novembro. E um convite de Biden aos governantes desses países cairia mal nas comunidades.
A exclusão deu a alguns líderes na região, especialmente aqueles cujo eleitorado é de esquerda, a condição de confrontar os americanos e recolher pontos em sua política doméstica, ao se posicionarem contra a decisão da Casa Branca, como AMLO.
E deu aos chineses a possibilidade de alfinetar Washington. “Cuba, Nicarágua e Venezuela não são países das Américas?” ironizou Zhao Lijian, porta-voz do Ministério de Relações Internacionais da China.
Força-tarefa na Casa Branca
A Casa Branca tentou minimizar a ausência de AMLO. De um lado, autoridades americanas disseram que a Cúpula ainda poderia ter sucesso sem ele. De outro, a gestão Biden lançou uma verdadeira força-tarefa de primeiro escalão para atrair mandatários à Califórnia.
A vice-presidente Kamala Harris foi despachada a Honduras, para se encontrar com a recém-eleita Xiomara Castro, que já avisou que mandará ao encontro apenas seu ministro de relações exteriores.
Um emissário de Biden, o ex-senador Cristopher Dodd, esteve em Brasília para transmitir “uma mensagem pessoal” do ocupante da Casa Branca sobre a importância da presença de Bolsonaro em Los Angeles. Depois de um ano e meio no poder, Biden também ofereceu a Bolsonaro a primeira oportunidade de uma interação direta entre os líderes. Pela reunião bilateral, Bolsonaro, que se ressentia por não ser recebido antes pelo mandatário americano, depois de lançar dúvidas sobre a eleição dos EUA em 2020, mudou de ideia e decidiu comparecer ao evento.
O próprio Biden também passou 25 minutos ao telefone na semana passada para convencer o presidente argentino Alberto Fernandez a viajar a Los Angeles, que também protestava pela exclusão dos três países.
E a mulher do presidente americano, a primeira-dama Jill Biden, se lançou a um tour entre Equador, Panamá e Costa Rica para cortejar os presidentes relutantes a participar do encontro, criado pelos EUA em 1994.
No total, cerca de metade dos mandatários das Américas estará em Los Angeles. Além de AMLO, outras ausências notórias são os líderes de Bolívia (Luis Arce), Honduras (Xiomara Castro) e Uruguai (Lacalle Pou), que contraiu covid-19 às vésperas do evento.
“Que os americanos tenham que ter feito esse tipo de esforço para atrair pessoas para Cúpula mostra mais fraqueza do que força. Por muitos anos, a América Latina ficou longe da prioridade na política externa dos EUA. Agora, os presidentes latinos escreveram na parede que também não veem os americanos com tanta urgência assim”, afirma Daniella Campello, professora de política da FGV e pesquisadora do Wilson Center.
Para Stuenkel, ter atraído Bolsonaro para a Cúpula livrou os americanos da “humilhação” de se ver sem os dois principais países (Brasil e México) em seu evento. E também da comparação com o líder russo Vladimir Putin, que apenas duas semanas antes de lançar a invasão à Ucrânia conseguiu atrair a Moscou tanto Bolsonaro quanto Fernandez. “Mas, na prática, os americanos estão se adequando para uma nova situação, em que a América Latina depende muito menos de Washington do que antes”, diz Stuenkel.
Última chance?
Analistas de políticas internacionais apontam que Biden pode estar diante de sua última oportunidade de se mostrar capaz de alterar positivamente a relação entre EUA e América Latina.
“Biden não conseguiu mostrar que é realmente muito diferente de Trump para a região”, afirma Ryan Berg, pesquisador sobre América Latina do Center for Strategic and International Studies.
Segundo Berg, depois de prometer um novo olhar para a América Latina na campanha, Biden falhou em alterar sensivelmente a dinâmica de relações americanas com a região. Suas políticas migratórias diferiram pouco do que fez seu antecessor, Donald Trump.
Os governos latinos se ressentem de não haver um plano econômico dos EUA para resgatar o continente, em crise mesmo antes do início da pandemia de covid-19. E notam que a distribuição de vacinas contra covid-19 na área foi feita primeiro pela China, e só depois pelos EUA.
Trump, cuja bandeira eleitoral foi o mote “América First”, que incluía até a construção de um muro na fronteira com o México para evitar a migração, não cultivou relações próximas com a América Latina. A esse vácuo de poder, muitos analistas internacionais atribuem o crescimento acelerado da presença da China na região.
Quebrando a tradição de sua diplomacia silenciosa, Pequim acusou os americanos de querer forçar sua agenda a todos os países latinos com a formatação dos convidados e da agenda da Cúpula das Américas. “Os EUA têm falado nas Américas para os americanos, mas é para o povo americano apenas”, afirmou o porta-voz Zhao.
A crítica dos chineses encontra eco na América Latina. É comum ouvir de diplomatas da América do Sul que os EUA só querem discutir o tema da migração a partir da perspectiva do Triângulo Norte da América Central (Guatemala, Honduras e El Salvador), algo que não tem nada a ver com a realidade de Brasil e Colômbia, por exemplo, que tem recebido enormes contingentes de venezuelanos. Por outro lado, os americanos se mostrariam pouco porosos a demandas brasileiras, como do fim de uso de algemas para deportados brasileiros em voos dos EUA de retorno ao Brasil.
Assim como Trump, Biden tem demonstrado dificuldade de olhar para a região não apenas da ótica de suas políticas domésticas – e o que pode ou não agradar um eleitorado latino conservador da Flórida – e entender que não existe uniformidade nas questões do continente. Segundo Thomas Shannon, a diplomacia americana precisa comparecer ao evento disposta a ouvir, e não só falar.
Para o diplomata americano Michael McKinley, ex-embaixador no Brasil, Colômbia e Peru, é precisamente por esses velhos erros que a atual Cúpula corre o risco de falhar.
“Apesar dos esforços do governo Biden para delinear uma visão nova e positiva para o envolvimento com a América Latina e o Caribe, é provável que velhos problemas entrem em jogo na próxima Cúpula das Américas. A política interna (dos EUA) e os governos da região com uma visão mais cética de Washington e suas intenções contribuem para essas tensões. É necessária uma nova perspectiva dos EUA – que leve em maior consideração a diversidade, as prioridades e a complexidade política da região. Sem essa mudança, a percepção e a realidade do declínio da influência dos EUA provavelmente se aprofundarão”, escreveu McKinley em artigo para o United States Institute of Peace.
Fonte: BBC News