Na imensidão da região do Vale do Javari, no oeste do Amazonas, 12 indígenas tentam todos os dias o que parece impossível: encontrar algum vestígio que remeta ao indigenista Bruno Pereira e ao jornalista Dom Phillips.
Os dois estão desaparecidos desde a manhã de domingo (5), quando tentavam alcançar a cidade de Atalaia do Norte (AM), na região da tríplice fronteira do Brasil com Peru e Colômbia.
Os indígenas, que vivem na terra indígena do Vale do Javari, passam os dias em duas embarcações no rio Itaquaí, nos mesmos trechos percorridos por Pereira e Phillips antes de desaparecerem.
A região de buscas margeia a terra indígena, considerada a segunda maior do Brasil. Se vistas de cima, as embarcações são dois pontos minúsculos numa enorme região preservada da Amazônia.
Mas não é a imensidão o problema mais óbvio, segundo os indígenas e integrantes de associações, e sim a falta de coordenação das buscas por parte dos órgãos oficiais. Eles também se queixam da ausência do Exército na rotina para tentar alcançar algum vestígio, alguma prova do que ocorreu no domingo.
A Folha percorreu o rio Itaquaí até os postos flutuantes de vigilância indígena mantidos pela Univaja (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari), a principal organização de representação dos indígenas da região. A associação representa sete etnias e defende os índios isolados que estão no Vale do Javari.
Pereira é servidor licenciado da Funai (Fundação Nacional do Índio) e colaborador da Univaja.
Nas embarcações que fazem as buscas por Pereira e Phillips, havia indígenas de quatro etnias (marubo, mayoruna, kanamary e matis), além de dois funcionários da Univaja coordenando os trabalhos. Os barcos estavam ancorados a uma hora do porto de Atalaia do Norte.
Ao chegar ao local, a Folha encontrou um clima de desesperança diante da quase absoluta ausência de vestígios da dupla desaparecida.
Os indígenas consideram esgotadas as buscas pelas margens do rio.
A estratégia de atuação agora envolve dois caminhos: exploração mata adentro em duplas e em grupos de três, por uma ou duas horas a cada trecho percorrido; e buscas nos igapós, como são chamadas as áreas alagadas em período de cheia.
Pessoas que conhecem Pereira se mantêm apreensivas nos trajetos percorridos pelas embarcações envolvidas nas buscas. Há pouca esperança de que o indigenista e o jornalista sejam encontrados com vida.
Os caminhos são percorridos sem muita conversa, e há um temor constante do que pode ser encontrado a cada nova incursão.
O medo da violência na região, principalmente da empreendida por pescadores ilegais que andam armados e que abastecem um mercado ilegal de pesca, é uma constante. Tanto que os indígenas temem serem identificados. Eles vivem em comunidades na terra indígena próxima das comunidades de ribeirinhos que estão nas bordas do território demarcado.
Atalaia do Norte é uma cidade de pouco mais de 20 mil habitantes. O isolamento da localidade dos centros populacionais do país ajuda a explicar a dificuldade de tudo.
De Brasília, por exemplo, é preciso primeiro chegar a Manaus, num voo de três horas. De Manaus a Tabatinga, cidade mais próxima a Atalaia, são mais duas horas de voo. Por água, são dias num barco.
Tabatinga está colada à cidade colombiana de Leticia. Benjamin Constant, a 50 minutos de barco de Tabatinga, está no caminho rumo a Atalaia do Norte, mais próxima do lado peruano. Uma estrada esburacada, percorrida em 40 minutos, separa Benjamin Constant de Atalaia, onde a Univaja está sediada.
Integrantes do MPF (Ministério Público Federal) relatam que, seis dias após o desaparecimento do indigenista e do jornalista, segue prevalecendo uma falta de coordenação nas buscas, após o atraso no emprego de recursos nos dois primeiros dias. É o mesmo relato feito por integrantes da Univaja, que ainda acrescentam: o Exército, apesar da propaganda, está ausente das buscas reais.
No período (entre 9h e 14h de sexta, 10) e nos locais (até o trecho do rio a 40 minutos de barco do posto da Funai) onde a Folha acompanhou os movimentos de buscas feitos pelos indígenas, nenhum barco do Exército estava atuando para localizar vestígios.
O trabalho de vigilância indígena, porém, tem a escolta da PM do Amazonas. São cerca de dez policiais fortemente armados.
Ao acompanhar as buscas, a reportagem cruzou com embarcações da Marinha e da Defesa Civil do Amazonas. Também havia bombeiros militares que começaram a fazer mergulhos atrás de elementos de prova.
Uma região de mata mais pisoteada motivou um mergulho, a uma distância curta das embarcações de vigilância indígena. Nada foi encontrado.
Duas embarcações do Exército foram vistas somente no porto de Atalaia do Norte, de onde saem os barcos.
Um dos envolvidos no trabalho desenvolvido pelos indígenas do Vale do Javari, que prefere não ser identificado por motivos de segurança, diz que não há articulação do Exército com os indígenas, que conhecem a região.
O Exército afirma atuar na região, inclusive com sobrevoos programados que incluem jornalistas que fazem a cobertura do desaparecimento de Pereira e Phillips.
A Folha também acompanhou a entrega de mantimentos às bases fluviais da vigilância indígena que estão fazendo as buscas. No barco estava Luiz Fernandes, 39, técnico da gerência de povos isolados da Coiab (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira). Ele já foi coordenador na Funai e contemporâneo de Pereira.
“Existe um atropelo nas buscas [por parte de órgãos oficiais]. A coordenação meio que foi feita pelos indígenas”, diz Fernandes.
Orlando Possuelo, 37, atua com os indígenas nas buscas. Ele é consultor da Univaja e segue nas embarcações. Orlando é filho do indigenista Sydney Possuelo, e também conviveu com Pereira em trabalhos de campo por quatro anos.
“O que estamos procurando são principalmente coisas robustas, provas do que ocorreu”, diz Orlando, que diz acreditar no envolvimento do pescador Amarildo Oliveira, o Pelado, no desaparecimento no domingo.
Equipes envolvidas nas buscas relatam que Pelado já trocou tiros com a PM por duas vezes, em razão de flagrantes de pesca ilegal na terra indígena.
Ao lado da vigilância indígena, os policiais militares que fazem a escolta do grupo guardavam uma embarcação apreendida com 500 quilos de peixe, entre pirarucu, aruanã e traíra.
A embarcação estava entocada num igapó, intocada. Segundo os policiais, o barco com os peixes pertencia a pessoas do grupo de Pelado.
A Polícia Federal afirmou na quinta que encontrou vestígio de sangue no barco de Pelado —que, segundo testemunhas, seguiu o indigenista e o jornalista antes de eles desaparecerem.
A Justiça do Amazonas acatou pedido da PF e decretou a prisão temporária dele por 30 dias. Dias antes, ele havia sido preso, mas sob outra acusação, por manter munição de fuzil e calibre 16, que são de uso restrito. A reportagem não conseguiu contato com a defesa de Pelado.
Fonte: Jornal de Brasília