Das mãos de Oscar Niemeyer (1907-2012) nasceram os projetos do Conjunto Moderno da Pampulha, reconhecido como Patrimônio Mundial, as linhas da Catedral Cristo Rei, em construção na Região Norte de Belo Horizonte, e centenas de outros trabalhos concretizados em Minas, no Brasil e mundo afora.
A assinatura do arquiteto carioca de fama internacional, cuja morte completará dez anos em dezembro, ficou eternizada também em serigrafias, com tiragem limitada, e um desenho original, entre 24 obras do acervo de uma família mineira que agora coloca à venda a coleção.
Um conjunto diante do qual – e nunca é demais lembrar que Niemeyer criou os cenários da peça “Orfeu da Conceição”, de Vinícius de Moraes (1913-1980), em 1956 –, fica a constatação, reforçada por especialistas: ele não era um gênio apenas na arquitetura.
A família do belo-horizontino que detém as obras tem consciência disso, mas não tem mais condições de manter a coleção, adquirida na década de 1980. “O desejo é que seja comprado por uma instituição cultural, pelo governo ou por um banco, para não sair de Minas”, explica um representante dos donos do acervo, que preferem se manter no anonimato.
As serigrafias (um tipo de gravura feito em processo manual) em preto e branco e coloridas, emolduradas e bem guardadas, foram adquiridas no Rio de Janeiro, diretamente da galerista Anna Maria Niemeyer (1930-2012), filha do arquiteto, que orientou a família a sempre lhe comunicar antes, caso tivesse interesse em expor a coleção.
ogo após a morte do proprietário dos bens, uma funcionária da Galeria Anna Maria Niemeyer enviou um fax com a relação das obras adquiridas, especificando a série, tamanho, número de exemplares existentes e cotação em dólar”, diz o representante, mostrando a cópia do documento.
Conforme relato dos familiares, a galerista considerava que o mineiro era o colecionador número 1 dos desenhos de seu pai. No conjunto, há serigrafias que são a primeira da tiragem, conforme a numeração.
O acervo é amplo, conservando trabalhos também de Cândido Portinari (1903-1962), pois o proprietário valorizava a arte, gostava de comprar obras não apenas como investimento, mas para seu prazer e contemplação. “Tudo o que está aqui faz parte da história e das escolhas de um admirador do grande arquiteto brasileiro. Na verdade, o conjunto existente aqui já é uma exposição”, atesta o representante.
Na coleção, há traços retratando as famosas curvas que se tornaram marca registrada de Niemeyer, autor dos projetos de ícones da Pampulha, na década de 1940. Especialmente para esta reportagem, foram retirados os invólucros de plástico-bolha de alguns dos quadros. Entre os destaques, está um desenho original da Praça da Apoteose, no Sambódromo do Rio. O monumento da Avenida Marquês de Sapucaí, palco do tradicional desfile das escolas de samba, foi projetado por Niemeyer e inaugurado em 1983.
Alguns trabalhos são acompanhados de textos de Niemeyer, a exemplo deste em tom quase profético: “Um dia mais realista, os homens sentirão afinal serem filhos deste velho planeta como as florestas e os rios, os bichos da terra e os peixes do mar. Uma flor será, para eles, uma irmãzinha, bela e perfumada, e se lhes ocorrer que amanhã, com eles, ela estará desfolhada e morta, a vida continuará a lhes parecer um breve passeio de amor e solidariedade”.
Conjunto único
Os herdeiros do acervo, muitos deles residentes em BH, sabem da importância das obras para a cultura nacional, ainda mais neste ano em que se completa uma década da morte de Oscar Niemeyer (ocorrida em 5 de dezembro de 2012).
“Conseguiram preservar tudo com carinho e cuidado até hoje. Não querem dispor de peça por peça, mas do conjunto, para ser apreciado na totalidade”, explica o representante da família que tem raízes no interior do estado e alimenta a esperança de ver as obras em exposição em um espaço cultural de Minas.
“São muitas as edificações projetadas pelo arquiteto, incluindo a Cidade Administrativa Tancredo Neves e a Catedral Cristo Rei, em BH. Além disso, há a Casa do Baile (Centro de Referência de Arquitetura, Urbanismo e Design, vinculado à Prefeitura de Belo Horizonte), local perfeito para a mostra dos trabalhos”, destaca. A decisão de vender o acervo se deve às dificuldades financeiras dos herdeiros.
Garantia
Sobre a idoneidade das obras, a família afirma que há assinatura de Oscar Niemeyer em todas – exceto a do Sambódromo –, bem como certificação. “Quem comprar, certamente, poderá pedir uma avaliação sobre cada desenho. Não sabemos o valor, o mais importante é manter os trabalhos reunidos e em Minas, onde o arquiteto deixou um legado admirado pelo mundo inteiro”, destaca o representante.
Brilho que ofusca outros talentos
O arquiteto e ex-diretor da Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Flávio Carsalade avalia que, talvez, a grandeza da obra de Oscar Niemeyer como arquiteto ofusque a importância de sua contribuição a outras artes plásticas, como a cenografia de Orfeu da Conceição, a escultura (a mão do Memorial da América Latina) ou o desenho. Especialmente quanto a esse último, avalia Carsalade: “O traço de Oscar é de uma beleza impressionante, fluido, expressivo, sintético, poético, seja retratando seus próprios projetos ou mesmo a paisagem do Rio de Janeiro ou as mulheres brasileiras, entre tantos outros motivos”.
Estudioso e admirador da obra de Niemeyer, Carsalade lembra que “talvez por conta de sua informalidade ao desenhar e da distribuição muitas vezes gratuita que fez de seus esboços, sua presença como artista plástico não tenha sido muitas vezes considerada com a seriedade que merece, mas, sem dúvida, há muitos desses desenhos que deveriam estar presentes em galerias e no mercado das artes”. “A genialidade do Oscar estava em sua expressão, através de qualquer ramo das artes”, resume.
Segundo um especialista ouvido pelo Estado de Minas, Niemeyer gostava muito de desenhar, e produziu muito nessa área. No entanto, é preciso atenção, pois, há algum tempo, andaram fazendo falsificações dos trabalhos, o que demanda avaliação criteriosa quanto às coleções apresentadas.
Vida e obra marcadas em BH e Minas Gerais
Considerado o maior arquiteto brasileiro, Oscar Ribeiro de Almeida de Niemeyer Soares nasceu em 15 de dezembro de 1907, no Bairro Laranjeiras, no Rio de Janeiro. Em 1929, ele se matriculou na Escola Nacional de Belas Artes, no Rio, saindo de lá em 1934 com o diploma de engenheiro arquiteto. Um ano depois, iniciou a vida profissional no escritório de Lúcio Costa (1902-1998), autor do Plano Piloto de Brasília (DF).
Já em 1960, Niemeyer tornou-se coordenador da Faculdade de Arquitetura da Universidade de Brasília (UnB). Três anos mais tarde, foi nomeado membro honorário do Instituto de Arquitetos dos Estados Unidos e ganhou o Prêmio Lenin da Paz, na antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Pelo caráter único e pelo conjunto inigualável de obras, foi eleito em 2007 o nono gênio mundial vivo em uma lista de empresa Syntetics.
A vida e a obra do mestre têm passagem marcante por Minas. Da Pampulha ao Centro Administrativo do governo estadual e à Catedral Cristo Rei, foram sete décadas de sonhos, trabalho e amor concreto dedicado a Belo Horizonte.
Nesse período, Niemeyer projetou no entorno da lagoa o Conjunto Moderno que se tornaria cartão-postal da capital e patrimônio da humanidade, prédios das praças da Liberdade, Raul Soares e Sete, entre outros. No interior de Minas, a relação começou mais cedo, em 1938, com a construção do Grande Hotel de Ouro Preto. Cataguases e Juiz de Fora, na Zona da Mata, e Diamantina, no Vale do Jequitinhonha, também registram obras com a marca do gênio do modernismo.
Nas conversas com amigos e nas páginas de seu livro “As curvas do tempo – Memórias”, de 1998, Niemeyer afirmava que a Pampulha, onde trabalhou no início da década de 1940, quando Juscelino Kubitschek (1902-1976) foi prefeito de BH, significou o despertar na sua carreira, servindo de referência até para o projeto de Brasília, inaugurada em 1960 e fruto da sua parceria com o urbanista Lúcio Costa. “A Pampulha foi o começo da minha vida de arquiteto” escreveu ele. “A Pampulha foi o início de Brasília”, gostava de repetir.
Depois de Brasília e Rio de Janeiro, Belo Horizonte é a capital com maior número de obras de Niemeyer.
Por Correio Braziliense