GIOVANA GIRARDI
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS)
O engenheiro agrônomo Evaristo de Miranda, um dos principais ideólogos do agronegócio brasileiro, se aposentou da Embrapa no fim de 2022, aos 70 anos. Foram mais de 40 anos à frente de diversos departamentos na Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, onde desenvolveu pesquisas -muitas vezes controversas e contestadas-, que moldaram o pensamento do setor.
Com passagens por diversas unidades da Embrapa, Miranda era, até o fim de 2021, chefe da Embrapa Territorial, posto que ocupava desde 2015. Passou o último ano como assessor direto da presidência da Embrapa e deve agora se voltar para a iniciativa privada.
Têm origem em Miranda algumas das ideias que se tornaram mantra no discurso do agronegócio: de que o Brasil é o país que mais preserva sua vegetação nativa; que nossas leis ambientais são as mais rigorosas e que o agricultor é penalizado por elas. Mas ainda assim, reza o discurso, é nas áreas produtivas que está a maior fatia das nossas florestas.
Também nasceu dos dados gerados por ele a ideia de que o país tem muita terra indígena e unidades de conservação, o que levaria a uma escassez de área para o crescimento agrícola.
Miranda acumulou, ao longo da carreira, influência junto aos governantes dos mais variados espectros políticos -pelo menos desde José Sarney-, mas foi no governo Bolsonaro (2019-2022) em que ele alcançou mais destaque, ditando as diretrizes da área ambiental desde a fase do governo de transição.
Chegou a ser cotado para assumir o Ministério do Meio Ambiente, mas acabou não aceitando, o que abriu espaço para Ricardo Salles. Seus dados, porém, guiaram o governo, que não criou nenhuma unidade de conservação nem terra indígena. E foram repetidos à exaustão nos últimos quatro anos pela Presidência da República, pelo Ministério da Agricultura e Pecuária e também pela Frente Parlamentar da Agropecuária.
Em seu primeiro discurso na Assembleia-Geral da ONU, em 2019, Bolsonaro afirmou, ecoando Miranda: “Nossa Amazônia é maior que toda a Europa Ocidental e permanece praticamente intocada. Prova de que somos um dos países que mais protegem o meio ambiente”.
Por outro lado, o agrônomo acumulou desavenças com a academia, principalmente com pesquisadores ligados a estudos de dinâmica do uso do solo, geoprocessamento e monitoramento por satélite. Mesmo dentro da própria Embrapa ele foi criticado e questionado.
A controvérsia que ficou mais conhecida foi em torno da mudança, em 2012, do Código Florestal -lei que estabelece a proteção de vegetação nativa em propriedades privadas.
As discussões no governo e no Congresso para alteração da lei, datada de 1965, vinham desde 2008 e ganharam força quando Lula, então no segundo mandato, encomendou estudo à Embrapa sobre a atribuição de terra no Brasil -quanto estava protegido em dispositivos como unidades de conservação e terras indígenas, quanto era ocupado pela agropecuária e quanto era preservado nas propriedades rurais.
Coube a Miranda conduzir a análise. Ele apresentou uma série de mapas e números argumentando que se somadas todas as formas de proteção, e se o Código Florestal fosse seguido à risca, a produção de alimentos seria inviabilizada, principalmente na Amazônia e no Pantanal. Foi a palavra-chave para dar força ao argumento dos ruralistas.
Na época os dados de geoprocessamento não eram tão precisos e era necessário trabalhar com algumas extrapolações e estimativas. Só que os cálculos de Miranda não batiam com os de uma série de outros cientistas.
Ninguém entendia como ele havia chegado àqueles números, uma vez que não abria sua metodologia nem publicava as descobertas em revistas científicas com revisão por pares, como é praxe.
Com o tempo, os pesquisadores descobriram que Miranda havia superestimado as áreas que deveriam ser protegidas ao longo de rios, as chamadas matas ciliares. A versão anterior do Código Florestal estabelecia faixas de proteção conforme a largura do rio. Quanto mais largo, maior deveria ser a proteção.
Miranda, ao fazer o cálculo, considerou sempre o maior valor para todos os rios, o que reduziu a área disponível para a agricultura. Segundo ele, apenas 29% do país estariam disponíveis para a produção. Outros estudos calcularam que essa fatia era bem maior, de cerca de 45%. Só hoje a agropecuária já ocupa cerca de 36% do território.
Na academia e no ambientalismo, convencionou-se a tratar os dados dele como “contabilidade criativa”. Mas, apesar das críticas, a mensagem colou. O código foi enfraquecido, e o Congresso conseguiu passar anistia a desmatamentos ilegais até 2008.
Miranda se tornou um requisitado palestrante em eventos do agronegócio. Em 2018, poucos meses antes da eleição, o vídeo de uma apresentação sua viralizou.
“O Brasil, que era grande, ficou pequeno, porque tem muita terra atribuída no Brasil”, disse no 6º Fórum de Agricultura da América do Sul, em Curitiba. “É legítimo dar terra para índio. O problema é que não cabe.”
Em outro momento, disse que ninguém protege mais o meio ambiente do que os proprietários rurais. “O total disso é 218 milhões de hectares. Isso é metade da área dos imóveis. O agricultor brasileiro é o único no mundo que protege metade. 25% do território nacional está protegido pelos produtores rurais.”
E lançou mais um número criativo. Afirmou que mais de R$ 3 trilhões em ativos estariam imobilizados para proteção ambiental. “Não tem nenhuma categoria profissional que preserve mais o meio ambiente, dedique mais recursos a isso, do que o produtor rural brasileiro.”
No ano passado, um grupo de 12 conceituados pesquisadores brasileiros especialistas em Amazônia, cerrado, mudanças climáticas, sensoriamento remoto e análise do ordenamento territorial publicou um artigo na revista científica Biological Conservation acusando Miranda e equipe na Embrapa de promoverem o que chamaram de “falsas controvérsias”.
De acordo com o grupo, liderado por Raoni Rajão, da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), as falsas controvérsias constroem a ideia de que não existe consenso científico sobre determinados assuntos, gerando dúvidas em políticos quanto a temas em que na verdade há, sim, consenso -por exemplo, as mudanças climáticas e o impacto do desmatamento.
Segundo os autores, como o climatologista Carlos Nobre, ex-Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), e a bióloga Mercedes Bustamante, da UnB (Universidade de Brasília), Miranda “manufatura incertezas”.
O trabalho foi bem recebido por cientistas, mas criticado por entidades do agro. A Embrapa publicou nota de repúdio defendendo a reputação do agronegócio, de Miranda e da própria empresa. Disse que os trabalhos da Embrapa Territorial demonstram, “o papel e o protagonismo incontornável do agricultor na preservação do meio ambiente e trouxeram subsídios e ânimo aos produtores rurais”.
Na última quinta-feira (5), a Embrapa divulgou uma nota anunciando a aposentadoria de Miranda e mais uma vez o presidente da instituição, Celso Moretti, lhe fez elogios.
“Talvez pela sua formação de ecólogo, Evaristo foi dos primeiros a nos trazer a visão da importância do equilíbrio entre a produção agropecuária e a preservação ambiental, que hoje temos muito clara. Em outras palavras, a visão que hoje predomina no agro brasileiro de que é possível produzir e preservar o meio ambiente.”
Miranda não foi encontrado pela reportagem, mas na nota da Embrapa disse que agora vai “seguir, no setor privado, na área de pesquisa e comunicação com o mundo urbano, sempre perto dos produtores rurais e das realidades do campo”.
Folha Press