O arganaz-do-campo (Microtus ochrogaste) é um roedor norte-americano que pesa pouco mais de 40g e não ultrapassa 12cm de comprimento quando adulto. O pequeno mamífero chama a atenção de cientistas devido aos fortes laços estabelecidos entre machos e fêmeas: uma vez que o casal é formado, não há espaço para outros parceiros. Mesmo quando um dos dois morre, o outro jamais volta a procriar. O segredo da fidelidade seria a substância ocitocina, também produzida no cérebro de humanos e popularmente conhecida como o “hormônio do amor”.
Agora, um estudo desafia décadas de pesquisas que atribuem à ocitocina o papel principal na formação de laços, seja entre parceiros sexuais ou mães e filhos. Publicado na revista Neuron, o artigo não nega a participação da substância em comportamentos monogâmicos ou amorosos, mas demonstra que o hormônio não é essencial à “neurobiologia do amor”. “Embora a ocitocina tenha sido considerada a ‘Poção do Amor nº 9’, parece que as poções de 1 a 8 podem ser suficientes”, diz Devanand Manoli, autor sênior do artigo e integrante do Instituto Weill de Neurociências da Universidade da Califórnia, em San Francisco (UCSF). “Esse estudo nos diz que a ocitocina é, provavelmente, apenas uma parte de um programa genético muito mais complexo.”
A ideia de que, sem esse hormônio, o arganaz-do-campo seria incapaz de criar laços surgiu na década de 1990, em estudos com drogas que impediam o hormônio de se ligar ao seu receptor. O interesse da ciência na ocitocina e em outras substâncias naturais associadas ao comportamento social se justifica pela busca de medicamentos que possam ajudar pessoas com essa habilidade prejudicada, como pacientes de esquizofrenia e alguns indivíduos no espectro autista.
Genética
No estudo atual, pesquisadores da UCSF e da Universidade de Stanford, também na Califórnia, usaram a moderna técnica de edição genética (CRISPR) para verificar se a ligação entre os casais de roedores de fato era controlada pelo “hormônio do amor”. Com a ferramenta, os cientistas desligaram os receptores cerebrais da ocitocina. Para a surpresa da equipe, os animais manipulados se comportaram da mesma forma que aqueles com a substância funcional. “Ficamos todos chocados. Não importa quantas maneiras diferentes tentamos testar isso: as ratazanas demonstraram um vínculo social muito robusto com seu parceiro sexual, tão forte quanto suas contrapartes normais”, diz Manoli.
Depois, os pesquisadores testaram se a substância também era indispensável a outras funções às quais é atribuída, como a ligação materna com o filho no parto e a liberação de leite na amamentação. “Descobrimos que ratazanas mutantes não são apenas capazes de dar à luz, mas também de amamentar”, conta Nirao Shah, neurocientista da Universidade de Stanford e coautor do estudo. “Tanto machos quanto fêmeas mutantes se engajaram nos comportamentos parentais usuais e criaram os filhotes até a idade de desmame.”
Precisão
Segundo Manoli, a diferença entre os resultados dos testes atuais e dos mais antigos, que usaram drogas para impedir a ação dos receptores da ocitocina, estaria na precisão maior da ferramenta de edição genética, comparada a estudos com fármacos. “As drogas podem se ligar a vários receptores, e você não sabe qual ligação está causando o efeito. Do ponto de vista genético, agora sabemos que a precisão de excluir esse receptor e, posteriormente, eliminar suas vias de sinalização, não interfere nesses comportamentos.”
O neurocientista diz que, especialmente na última década, esperava-se ansiosamente que a ocitocina se mostrasse uma “poderosa terapêutica para ajudar pessoas com deficiências cognitivas sociais devido a condições que vão do autismo à esquizofrenia”. “Esta pesquisa mostra que provavelmente não existe uma solução mágica para algo tão complexo e cheio de nuances quanto o comportamento social”, aponta.
Inclusive, recentemente, um estudo de outra equipe de pesquisadores, da Universidade de Duke, indicou que a substância não aumentou habilidades sociais em crianças e adolescentes autistas. O artigo, publicado no New England Journal of Medicine, testou um remédio à base do hormônio em 290 pessoas de 3 a 17 anos, por 24 semanas, sem chegar ao resultado esperado.
De acordo com os neurocientistas da UCSF e de Stanford, o estudo atual sugere que o modelo prevalente — um único caminho ou molécula sendo responsável pelo vínculo social — é simplificado demais. “Essa conclusão faz sentido do ponto de vista evolutivo, dada a importância do apego para a perpetuação de muitas espécies sociais. Provavelmente existem outros caminhos ou outras conexões genéticas para permitir esse comportamento. A sinalização do receptor de ocitocina pode ser uma parte desse programa, mas não tudo”, resume Manoli.
Combinação de ações
A ocitocina é importante, mas é possível seja a combinação de ações e interações de múltiplas substâncias químicas cerebrais, juntamente com fatores ecológicos, que criam laços duradouros em animais, inclusive em humanos. Provavelmente, existem várias maneiras diferentes pelas quais a monogamia é instanciada no cérebro, e isso depende de quais espécies estamos olhando: o circuito cerebral que faz o amor durar em algumas delas pode não ser o mesmo em outras.
Nicholas Grebe, neurocientista da Universidade de Duke que estuda o papel da ocitocina na monogamia entre algumas espécies de lêmures
Correio Braziliense