Por muito tempo, nas rodas de samba, nos palcos, nos instrumentos e nas composições, as mulheres não tiveram vez. Esses lugares eram redutos masculinos, mas, aos poucos a essência feminina foi ocupando também esses espaços e ultrapassou a posição de “musa inspiradora” ou de dançarina.
No entanto, nem sempre foi assim. As presenças femininas são relevantes para a gênese e para a construção do samba. Seja no Rio de Janeiro, seja na Bahia, não se pode negar que o gênero tem raízes quilombolas e é símbolo da resistência negra. Em uma época em que existia a Lei da vadiagem, as “tias baianas” abriram as casas, cozinhas e os terreiros para fazer a música acontecer, elas tocavam, cantavam e dançavam, além de serem ótimas anfitriãs. Tia Ciata foi a mais conhecida delas — a casa da mãe do samba, no Rio de Janeiro, era parada obrigatória quando se tratava de festas e celebrações, e se destacava nas rodas de partido alto.
Com o passar do tempo, as mulheres passaram a ganhar papéis secundários, mas de suma importância, enquanto os homens comandavam a música propriamente dita. No entanto, o gênero que virou majoritariamente masculino, aos poucos se transforma em frente de empoderamento feminino, seja nas letras, nas performances, no público, ou no fato de existirem mulheres sambistas.
As precursoras em se arriscar neste meio se destacaram. Entre elas, Dona Ivone Lara. Ela foi cantora, percussionista e militante em plenos os anos 1960. Ela foi a primeira mulher a fazer parte da ala de compositores da escola de samba. “Para mim, a Dona Ivone Lara é a grande rainha do samba tanto como cantora, como compositora quanto como cavaquinista. Além de ter sido militante do serviço social, ela estava atrelada a essas questões humanitárias que a tornam uma mulher maior ainda”, afirma a sambista brasiliense Mariana Sardinha.
No cenário musical atual, temos muitas cantoras que passam esta mensagem por meio das rodas. A cantora Doralyce Gonzaga com Silvia Duffrayer adaptou a música Mulheres, de Toninho Geraes, para uma versão que empodera as ouvintes, por meio de famosas mulheres da história brasileira. “Nós somos mulheres de todas as cores, de várias idades, de muitos amores/ Lembro de Dandara, mulher foda que eu sei, de Elza Soares, mulher fora da lei/ Lembro de Anastácia, valente, guerreira, de Xica da Silva, toda mulher brasileira/ Crescendo oprimida pelo patriarcado, meu corpo, minhas regras, agora, mudou o quadro”, reafirma a paródia.
Realmente, o quadro está mudado. No Distrito Federal, grupos e rodas totalmente compostos por mulheres são destaque na capital. A cena feminina brasilense no samba é repleta de talentos e, mesmo com “olhares tortos”, a história do samba passa a ser contado do olhar feminino. Confira destaques dessa cena!
Mulheres de samba
No dia 8 de março de 2016, Clara Nogueira e Rebecca Dourado foram a um evento de samba na capital federal em homenagem ao Dia Internacional da Mulher. Ao chegarem lá, se depararam com apresentações de homens, desde a atração principal até os coadjuvantes. “No palco só tinham homens, a única coisa que foi feita foi colocar fotos de mulheres sambistas no fundo sendo projetadas”, relembra Clara.
Neste mesmo local, elas conheceram Elizabeth Maia e as três ficaram muito incomodadas com a situação. Assim, as três se reuniram e conversaram sobre a vontade de criar um projeto feminino em que pudessem valorizar o lugar da mulher na roda. A ideia era que elas deixassem o papel de convidadas para o de promotoras das rodas de samba. “Tirar a mulher do lugar da diva e colocar num lugar de igualdade com os homens. Alguém que tem o mesmo peso e a mesma importância para uma roda como eles”, define Clara. Assim surge o Mulheres de samba.
Há três anos, o coletivo traz à tona a discussão sobre a importância da mulher e a representatividade dentro do gênero musical. O projeto reúne mulheres que tocam, cantam e compõem e busca fortalecer a cena em Brasília. “Somos, geralmente, entre 30 e 40 mulheres em torno de uma grande roda. Mais do que visibilidade, buscamos fortalecer os laços afetivos e de trabalho, questionar e fazer o público se questionar sobre os espaços na música para mulheres, ainda mais no gênero do samba”, revela a produtora do projeto, Angélica Diano.
“A abertura do samba para a participação das mulheres continua difícil e, embora sempre haja nomes em destaque, o machismo ainda é muito vivo dentro do gênero musical. Das letras às formações de banda”, lamenta Angélica. No entanto, a roda totalmente feminina é sucesso entre o público, mesmo com algumas resistências. “Num primeiro momento, o público olha com um ar de estranhamento e duvida que vai ser bom. Depois é só amor, porque é lindo de se ver e de sentir”, afirma.
Assim, as sambistas manifestam pelos eventos da capital a “nova forma” do gênero musical e reafirmam os locais de fala delas. “Empoderamento não é só uma palavra que está na moda, mas sim um ato de empoderar quem você é, a história e a ancestralidade. Todo lugar é lugar de resistir”, reitera a produtora do projeto.
Três perguntas / Angélica Diano
Como você percebe o protagonismo da mulher no samba e nas rodas?
Ainda é pequeno, é menosprezado. Não se tem o cuidado necessário, principalmente com as nossas instrumentistas. Sempre acham que elas não são capazes e que aquele lugar não é o nosso. Só seria se estivéssemos dançando, não tocando e cantando, muito menos produzindo.
Faz um tempo que temos vocais femininos no samba. No entanto, as mulheres passaram a comandar também os instrumentos e a percussão, você acha que essamudança se deve a quê?
Se deve ao fato de que a mulher pode estar onde ela quiser e isso nos é de respeito a quem nós somos e a nossa importância na vida.
Quais as maoires dificuldades que você, como mulher e amante do samba nessa sociedade machista, já enfrentou?
Vários. O pior é a falta de respeito, a sabotagem do nosso trabalho, pois fazemos tudo com muito amor e leveza. Isso incomoda muito, mas graças a Zumbi temos alguns homens no meio que não se igualam a esse cenário e temos prazer em estar com eles.
Samba Flores
Greici Lira, desde criança, frequentava escolas de samba com as primas e nunca abandonou o ritmo — muito pelo contrário: cada dia mais o ama e o admira. Cercada por esse sentimento, ela reuniu amigas para se divertir em uma roda formada por elas. “A ideia inicial era reunir só um grupo de amigas para fazer uma roda de samba, nada demais, nada formal. O objetivo foi mudando e assim nasceu o grupo Samba Flores”, relembra Greici.
“É muito importante estarmos ganhando cada dia mais esse espaço”, destaca. Além do grupo formado só por mulheres, a qualidade do som é motivo de aplausos. “O público elogia muito, fica bem admirado com o trabalho, com a perfeição que a gente consegue reproduzir as músicas nos shows”, afirma.
No entanto, não é sempre que a repercussão é positiva. “Quando eu sou chamada para uma roda, normalmente, os homens olham torto, como se se perguntassem ‘será se ela vai saber tocar?’, ‘será que ela toca esse instrumento direito?’. As pessoas que não conhecem olham meio torto”, Greici lamenta. Mas logo elas mostram o motivo de estarem lá e, aos poucos, conquistam o público.
Não são esses julgamentos que vão fazer Greice abandonar o repique de mão, instrumento por ela tocado. Mulheres instrumentistas no gênero eram raridade até um tempo atrás, mas aos poucos elas se encorajam. “As percussionistas tiveram coragem de mostrar a cara, de assumir a profissão. Antes era um mundo muito fechado. Hoje não — as mulheres meteram a cara para assumir isso. A mulher foi buscar um reconhecimento profissional na área musical da percussão”, pontua.
Mariana Sardinha
Mariana Sardinha vem de uma família bem musical: o tio toca cavaquinho, o avô tocava clarineta, a bisavó tocava violino e a mãe canta muito bem. Não tinha para onde ela correr. Aos 9 anos, ela ingressou na escola de música, onde após experimentar diversos instrumentos, como flautas e guitarras, descobriu o maior interesse. “O cavaquinho foi quando eu realmente me encontrei e ele estava naturalmente ligado pelo gênero de samba e choro”, revela a percussionista.
A cavaquinista destaca que é importante ter referências femininas de sambistas que contribuem e incentivam outras mulheres a seguir os passos delas. “Há uns dois anos, quando eu estava dando mais aulas particulares de cavaquinho, eu comecei ter muitas alunas. Eu me considero uma referência aqui em Brasília. As mulheres me veem e pensam: ‘Olha aquele lugar pode ser ocupado’. (Ela) Sai um pouco daquele papel só de cantora e passa a ocupar o lugar de instrumentista”, orgulha-se.
O público feminino passou a comandar as rodas de samba e a fazer delas um local de reafirmações e de resistências no meio social. “A sociedade continua machista, mas a gente tem se empoderado melhor, se ajudado mais, se apoiado, se articulado contra isso”, afirma Mariana.
Com o samba sendo transmitido da perspectiva feminina, o eu-lírico se transforma. “Agora, a gente tá contando uma outra história, a partir um outro olhar. Com certeza, uma forma de resistir, de mostrar que a gente está aqui. É um lugar de fala suprimido pelo machismo.”
* Estagiária sob a supervisão de Vinicius Nader