O Brasil é um dos maiores produtores de alimentos do mundo, com o agronegócio batendo recordes de produção e de exportações, contribuindo para o saldo positivo da balança comercial. No entanto, o país abriga uma série de contradições, agravadas com a pandemia e que são vistas nos pratos dos brasileiros.
Apesar de o Brasil ter uma das maiores áreas cultiváveis do planeta devido ao clima e ao solo favoráveis, 116 milhões de habitantes vivem em situação de insegurança alimentar, o equivalente a 16,8% dos 680 milhões de pessoas no mundo que não conseguem realizar todas as refeições diárias recomendadas por nutricionistas. E, ao mesmo tempo em que 19 milhões de cidadãos no país passam fome, 26,8% da população adulta sofrem de obesidade devido à alimentação baseada em produtos baratos, ultraprocessados ou de pouco valor nutritivo.
Antigamente, até mesmo os mais pobres conseguiam se alimentar melhor, porque a refeição principal era de produtos in natura. O prato balanceado tinha arroz, feijão, uma salada e uma proteína como “mistura”. Contudo, nos dias de hoje, principalmente devido à inflação seguir em dois dígitos (de 10,38% no acumulado em 12 meses até janeiro, conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística-IBGE, divulgados ontem), corroendo o poder de compra das famílias, os alimentos ultraprocessados ou de pouco valor nutritivo, que são mais baratos, ocuparam o lugar de destaque no prato. E, de acordo com especialistas que participaram do Correio Talks Live — Sistemas Alimentares e Desenvolvimento Sustentável, realizado, ontem, pelo Correio Braziliense, em parceria com o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), esse é um dos principais motivos do aumento do número de adultos obesos no país.
Os participantes do debate destacaram que a obesidade e a insegurança alimentar são duas faces do mesmo problema que assola o Brasil e, que, na pandemia, ficou mais evidente, devido ao aumento da desigualdade e a volta do país ao mapa da fome.
“A falta de comida de verdade causa os dois problemas, causa o sobrepeso e a obesidade e a fome e a desnutrição. Em um sistema que é cada vez mais dominado por ultraprocessados, a gente tem menos alimentos e comida de verdade, e vai ter gente com desnutrição, com fome e com obesidade”, avaliou o assessor regional em Nutrição e Atividade Física da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), Fábio Gomes.
Bióloga, professora da Universidade de Brasília (UnB) e integrante da Academia Brasileira de Ciências, Mercedes Bustamante concordou com Gomes e ressaltou que o acesso aos alimentos é uma parte do problema no país. Vale lembrar que as taxas de desemprego ainda são elevadas e devem permanecer em dois dígitos, de acordo com especialistas. Além disso, devido à inflação persistente, o endividamento das famílias vem batendo recordes, comprometendo 51,2% da renda disponível, conforme dados do Banco Central referentes a outubro.
“O acesso ao alimento de qualidade, in natura, pouco processado é uma parte importante da segurança alimentar. (…) E, muitas vezes, esses produtos ultraprocessados são aqueles que estão disponíveis para essas camadas mais vulneráveis”, avaliou Bustamante.
Além disso, a questão do preço dos alimentos é central no debate, como frisou a nutricionista e coordenadora do Programa de Alimentação Saudável e Sustentável do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Janine Coutinho. “Dados de 2017 apontam que o Brasil, na época, ainda tinha uma tendência de que os produtos in natura eram mais baratos, ao contrário de muitos países desenvolvidos. Mas essa inflexão, se ela não chegou na pandemia, está próxima de chegar”, afirmou.
Preço influenciado pelo peso que a agricultura das commodities tem no Brasil. “A gente vê o aumento da área plantada de soja que não é para o consumo humano e uma redução da área plantada de feijão. Então, vai perdendo esse espaço na ponta, no sistema de produção, na distribuição e, consequentemente, no acesso”, ressaltou Bustamante.
Meio ambiente
A forma convencional de produção dos alimentos, além de adoecer a população, tem sido responsável pelo impacto nas mudanças climáticas e nas ofertas massivas de ultraprocessados. “Em nível global, de 20% a 35% das emissões são relacionadas à agricultura”, exemplificou Janine.
Em meio à pandemia, a nutricionista destacou que a crise climática é, também, uma emergência sanitária aguda e prolongada. “A forma de produzir os alimentos está aumentando os riscos de doenças zoonóticas, que são aquelas passadas dos animais para os humanos. Então, é um ponto de atenção muito grande”, sustentou.
A preocupação com o meio ambiente também acontece porque as políticas de combate ao desmatamento e às emissões de gases causadores do efeito estufa serão decisivas para preservar a competitividade da agropecuária nacional nos mercados interno e externo, de acordo com o deputado federal Marcelo Ramos (PSD-AM). Na avaliação do parlamentar, por sinal, esses serão os dois grandes desafios para o país na construção de políticas públicas voltadas ao desenvolvimento sustentável e que passam, inevitavelmente, pelo Congresso.
Ramos lembrou que o consumidor brasileiro, assim como o europeu, tende a ficar cada vez mais seletivo na escolha de produtos oriundos de cadeias mais sustentáveis. “A escolha do consumidor — de uma análise de procedência e de impacto ambiental — já está presente e é uma escolha que deve crescer daqui por diante”, disse.
O deputado federal Rodrigo Agostinho (PSB-SP) enfatizou as disparidades na produção advinda da agricultura familiar versus a produção agrícola convencional. “A agricultura familiar, em uma série de situações, é que tem conseguido inovar. Temos visto, cada vez mais, a utilização de bioinsumos para controle biológico com produção orgânica, que cresce mais do que a produção não orgânica”, frisou.
Devido à precarização dos órgãos de fiscalização do meio ambiente, promovida pelo governo Jair Bolsonaro, Mercedes Bustamante lamentou o esvaziamento dos conselhos consultivos da sociedade civil junto ao Executivo federal. “Houve um esvaziamento ou encerramento dos conselhos consultivos quando a gente mais precisa deles”, reprovou.
A pesquisadora também não poupou críticas ao Projeto de Lei 6.299/2002, o chamado PL do Veneno, aprovado, ontem, pela Câmara, porque amplia o uso de agrotóxicos, proibidos em outros países por serem prejudiciais à saúde.