Com história ainda breve no cerrado brasileiro, o trigo cultivado na região começa a ganhar fama internacional. Estudos realizados desde as décadas de 1980 e 1990 pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) com o intuito de trazer mais produtividade e qualidade para o cereal apresentam bons resultados. A expectativa é de que, em poucos anos, o Distrito Federal seja autossuficiente na produção de trigo.
No ano passado, em uma lavoura na área rural de Cristalina, em Goiás, a 130km de Brasília, o trigo do produtor Paulo Bonato ganhou repercussão mundial, por ter batido o recorde global de produtividade em quilos por hectare/dia, com 9.600 quilos em 110 dias, para uma área irrigada de 51 hectares.
A cultura do trigo chegou ao Brasil durante a imigração europeia, no século 19, e se instalou na região Sul do país, que possui clima mais favorável para o plantio do cereal. Com temperaturas mais baixas, a região responde atualmente por 90% de toda a produção nacional. Mas o cenário tende a mudar.
No Distrito Federal, o trigo também já ganhou muito espaço, principalmente na região agrícola do PAD-DF, localizada a 60km da área central de Brasília. A média de produtividade na região, de acordo com o pesquisador Júlio César Albrecht, da Embrapa Cerrado, já chega a 6 mil quilos por hectare e a produção neste ano deve evoluir de 3,1 para 3,6 mil hectares, em comparação com 2021.
“Nós acreditamos que, daqui a cinco anos, o Distrito Federal vai ser autossuficiente no trigo, e um trigo de excelente qualidade. Nós já produzimos os melhores trigos em termos de qualidade industrial para panificação. Então as próprias padarias aqui da região ficam muito satisfeitas quando recebem farinhas desenvolvidas aqui”, relata o pesquisador.
Sucessos como a da lavoura de Bonato foram possíveis graças aos trabalhos desenvolvidos pela Embrapa. No início dos anos 1970, a média de produtividade do trigo no país era de 600 quilos por hectare. Com o início das pesquisas, ainda na década de 1970, no Rio Grande do Sul, a empresa conseguiu expandir a produção para 3 mil quilos por hectare, o que representou cinco vezes mais produtividade. O mesmo movimento vem sendo feito no DF.
Para conseguir a excelência na qualidade e produtividade, os pesquisadores tiveram que buscar soluções no exterior. “Trouxemos variedades do México e começamos a cruzá-las com os materiais do Sul e passamos a selecionar e criar variedades para a região do cerrado do Brasil Central”, explica Albrecht.
Além disso, até a época de plantio e colheita do cereal foi alterada. Enquanto no Sul, o trigo é conhecido como “de inverno”, no Centro-Oeste a variedade foi adaptada para conseguir suportar climas mais quentes, como o do cerrado, e passou a ser chamada de “trigo de primavera”, ou “trigo tropical”.
“Com essas variedades, então, nós partimos de dois mil quilos por hectare para cinco mil, seis mil quilos por hectare e hoje estamos chegando a nove mil quilos por hectare. Estamos batendo recorde mundial, inclusive de produtividade, com a cultivar BRF 264 (variedade produzida pela Embrapa), que é uma das últimas cultivares que foram lançadas, e com uma excelente qualidade de grão para produção de pães”, conta o pesquisador.
Autossuficiência
Atualmente, a guerra entre Rússia e Ucrânia — dois dos maiores exportadores de trigo do planeta — tem gerado dificuldades para o abastecimento do cereal em diversos países, inclusive no Brasil, que ainda é o oitavo maior importador de trigo do mundo. A Argentina é a principal exportadora para o país, com 87% de todas as importações de trigo. Outros países, como Canadá, Rússia e Ucrânia, também vendem parcelas significativas do cereal para o Brasil.
Por conta disso, o tradicional pão francês, derivado do trigo, tem sumido aos poucos da mesa do brasileiro. O professor de geografia aposentado Esídio Sérgio, 61, conta que tem cortado o consumo de pão na sua casa. “Tenho diminuído o consumo. O salário da gente tem se dividido para energia, água, alimentação, e a inflação corrói muito o salário”, conta. Já o aposentado João Bezerra Filho, de 79 anos, relata que nem consegue mais comprar pão. “Não compro mais pão, não. Não tem jeito”, revela.
Com os desafios impostos pela guerra, a grande ambição atual da pesquisa de trigo no país é conseguir a autossuficiência em breve. Estima-se que o consumo total de trigo no Brasil seja de 12,7 milhões de toneladas e a previsão é de que esse número chegue a 14 milhões nos próximos anos. Atualmente, a produção estimada para 2022 é de 8 milhões de toneladas de trigo, suficiente para atender 62% de toda a demanda do país.
O chefe-geral da Embrapa Trigo de Passo Fundo (RS), Jorge Lemainski, destaca que o cenário é positivo e que o Brasil caminha para ser autossuficiente dentro de um período de 10 anos. Ele avalia que, pela atratividade ao produtor e pelo avanço nas técnicas de melhoramento genético, o cenário será possível em breve. “O Brasil vai ser autossuficiente no trigo em menos de uma década e vai contribuir também com a exportação para a segurança alimentar de parte do mundo”, projeta.
Para alcançar o objetivo, é necessário expandir a fronteira agrícola do trigo, aponta Lemainski. Dessa forma, Brasília foi escolhida para sediar o 15º Fórum Nacional de Trigo, que ocorreu no último dia 28 de junho em um centro de convenções próximo ao Eixo Monumental. Na visão de Lemainski, a ideia de realizar o evento na capital federal deve-se à expansão do trigo tropical pela região e à proximidade de outros atores da cadeia produtiva.
“Em Brasília, há a grande fronteira que pode ser explorada e o trigo compor os sistemas de produção, sem necessidade de abrir um metro quadrado sequer de novas áreas. O trigo vai entrar em sucessão à soja e ao milho, que são as principais culturas de verão, para compor o sistema de produção dos sistemas irrigados para melhoria de solo da biorremediação e como fonte alternativa de renda. Isto permite dinamizar a economia local”, explica.
O presidente da República, Jair Bolsonaro, também endossou a expectativa de o país ser autossuficiente nos próximos anos. “Estamos tendo um incremento de mais de um milhão de toneladas no último ano. Em cinco anos, seremos autossuficientes em trigo e, em 10 anos, estaremos exportando o equivalente ao que nós consumimos”, anunciou o chefe do Executivo em vídeo divulgado nas redes sociais. “É um sinal de que o Brasil é um exemplo para o mundo na questão do agronegócio”, concluiu.
Brusone
Embora haja uma perspectiva de crescimento para os próximos anos, o trigo deve enfrentar outro problema. Identificada pela primeira vez no Brasil, a Brusone é uma doença de difícil controle, causada pelo fungo Pyricularia oryzae e pode causar deformação, rugas e diminuição dos grãos de trigo e, consequentemente, levar à perda de boa parte das produções.
A Brusone já se espalhou por plantações de trigo em Bangladesh, na Zâmbia e em outros países da Ásia e da África. Para evitar uma disseminação ainda maior da doença, a Embrapa, atualmente, trabalha para conseguir variedades do cereal mais resistentes ao fungo.
“Tem que fazer tratamentos preventivos para evitar a entrada dessa doença nas lavouras de trigo. Tanto da safrinha como do trigo irrigado. A Embrapa está desenvolvendo variedades mais resistentes a essa doença, para que nós consigamos diminuir o custo de produção, com aplicação de fungicidas, para o controle dessa doença”, explica o pesquisador Júlio Albrecht.
Trigo no Norte
Além de já estar presente nas regiões Sudeste e Centro-Oeste, o trigo avança para as regiões Norte e Nordeste do país. O pesquisador Márcio Só e Silva, que trabalhou durante 30 anos na Embrapa e hoje está à frente da Semevinea Genética, empresa dedicada ao melhoramento genético do trigo, desenvolve uma série de estudos para conseguir expandir com qualidade a produção do cereal nessas regiões.
Com clima quente e seco na maior parte, o Nordeste tem apresentado um cenário desafiador para os produtores. Atualmente, as pesquisas se concentram na região do oeste da Bahia, Ceará, Maranhão e Piauí.
“A introdução e o desenvolvimento de cultivares de trigo para essas regiões de terceiro ciclo será o mais desafiador, em função das características do ambiente serem bem distintas do cerrado. Encontrar uma plataforma adaptativa ideal para essas latitudes será o paradigma do trigo verdadeiramente tropical”, afirma Márcio.
Em Roraima, no extremo norte do país, testes de expansão do trigo também já estão sendo realizados — e com resultados surpreendentes. “O objetivo do nosso trabalho foi: ‘Será que a gente levando o trigo tropicalizado aqui do cerrado da região central do Brasil, adaptaria-se ao cerrado roraimense?’ Então fomos fazer o experimento. Plantamos três materiais no início de dezembro e, para a nossa surpresa, com 66 dias, as plantas já estavam aptas a serem colhidas”, relata o pesquisador Daniel Schurt, da Embrapa Roraima.
“Em função disso, a gente começou a ver que existia uma possibilidade de uma cultura que no trópico se dizia que não podia ser explorada. Mas a gente está quebrando os tabus. Com o quê? Com o melhoramento genético. Então, se lá nos anos 1980 ou 1990, se a gente fosse plantar lá em Roraima, realmente não daria, porque a genética é outra”, diz, ainda, Daniel.
Embora seja um estado que possua boa parte do território coberto pela Floresta Amazônica, o pesquisador afirma que é possível expandir a cultura do trigo na região sem desmatar a floresta. “Essa é a proposta que a Embrapa tem a trazer para a região amazônica. Alternativas para as pessoas poderem ter qualidade de vida. Então a gente precisa levar tecnologia para o produtor que mora na Amazônia”, explica.
Para Márcio de Só e Silva, essas novas fronteiras agrícolas podem ser o diferencial para a autossuficiência brasileira. Mesmo diante de todas as dificuldades que as regiões apresentam, o futuro do trigo deve acompanhar a migração do cereal para áreas mais afastadas dos centros tradicionais no sul do país.
“A autossuficiência de trigo no Brasil tem sido objeto de muita polêmica, pois produzimos de tudo e o trigo tem sido o “patinho feio”. Minha aposta na produção de trigo de sequeiro (sem irrigação) nas regiões não tradicionais, como o cerrado e as regiões de latitudes menores, como o Nordeste e Norte, devem se constituir nos atores determinantes dessa autossuficiência. Área não falta para isso, a questão passa pela estruturação da cadeia produtiva de trigo como um todo”, afirma.
Por Correio Braziliense