Obra do artista Cícero Dias está entre as mais importantes da fase modernista
Cícero Dias era um sujeito diferente. Descrito em cartas de amigos como dono de olhos abrasadores e de uma personalidade marcada pela gana e pela convulsão interna, construiu uma obra capaz de unir o engenho à vanguarda europeia como se as duas pontas desses universos estivessem próximas desde o início dos tempos. Não foi à toa que o crítico francês André Salmon tomou emprestado verso de Paul Verlaine para descrever Dias como um “selvagem esplendidamente civilizado”.
Originalmente, o verso foi dedicado a Arthur Rimbaud. Mas caiu bem em Cícero Dias naquele 1937 em que, logo após desembarcar em Paris a convite de Di Cavalcanti (e para fugir da perseguição de Getúlio Vargas), encantou os franceses com uma coleção de figuras imaginárias brotadas do cordel e do canavial pernambucano. Antes, já havia estarrecido o Brasil em uma exposição no Rio de Janeiro.
Essa história é contada em Cícero Dias — Um percurso poético, reunião de 125 obras nas quais estão estampadas todas as fases do artista. Com curadoria de Denise Mattar e da filha de Cícero, Sylvia Dias, a mostra faz um panorama da produção do artista, além de narrar toda sua trajetória, de Recife a Paris, onde morreu em 2003, aos 95 anos.
Fotografias, cartas e documentos completam o conjunto com registros dos vários momentos e fases da vida do pernambucano, que foi amigo de gente como Manuel Bandeira, Gilberto Freyre e José Lins do Rego. “É uma exposição realmente retrospectiva, a gente faz um levantamento de toda a obra em cada uma das fases, que no caso dele são várias e bastante diferentes umas das outras”, avisa Denise. “Dividi a exposição em três grandes grupos. O primeiro chama-se Brasil, o segundo chamei de Europa, porque ele vai para Paris, mas viaja, fica circulando até a época da guerra. E o último grupo é quando ele muda para Paris e fica lá definitivamente para o resto da vida.”
Cícero Dias desponta no cenário artístico nacional em 1928 com uma exposição que surpreende o Rio de Janeiro. Com um trabalho novo e original, deixa os modernistas intrigados. Ao contrário da turma de Tarsila do Amaral e Di Cavalcanti, Dias não estava visceralmente ligado ao cubismo. Nas suas aquarelas e pinturas, o mundo do Recife, de Pernambuco, da cultura de cordel, das lembranças e heranças da fazenda da família na qual cresceu — o famoso Engenho Jundiá — tomavam a dianteira. “Ele aparece com um tipo de trabalho inteiramente novo e completamente original, com viés diverso e respondendo de forma incrível à proposta do Mario de Andrade, que era a da brasilidade”, explica Denise.
Um mundo erótico, povoado de narrativas que traziam para as galerias figuras do cordel, com cavaleiros medievais, cantadores, menestréis, cangaceiros e princesas, encantou a cena cultural carioca, mas também chocou. Em 1931, ao apresentar Eu vi o mundo… E ele começava no Recife no Salão Revolucionário, no Rio, Dias causou incômodo.
A sexualidade explícita registrada no trabalho de 15 metros realizado sobre papel craft incomodou até mesmo os modernistas e o artista acabou por cortar três metros do desenho. A obra não está na exposição em Brasília — o proprietário, que é do Rio, só permitiu que fosse apresentada na versão da mostra na capital fluminense —, mas um vídeo mostra os detalhes da criação.
Na década de 1930, Cícero Dias seguiu para Paris. Deixava para trás um ambiente tenso, de perseguição e cerceamento da liberdade de expressão, para encontrar uma cidade mergulhada na vanguarda artística, centro da Europa, lugar escolhido por gente como Pablo Picasso, Chagall e Modigliani, todos em fuga do crescimento do autoritarismo em seus países de origem.
“Quando chega em Paris, ele faz uma exposição, em 1937, e faz o maior sucesso, começa a vender, fica amigo do Picasso, que se encanta com ele”, conta Denise. No entanto, a Segunda Guerra bate às portas da Europa e o meio artístico, aos poucos, se desmancha com exílios, prisões e esconderijos. Cícero Dias, que trabalhou como secretário de um embaixador brasileiro, é indicado pela Embaixada do Brasil como parte de um grupo de prisioneiros que seria trocado por alemães. Ele havia sido detido em Baden Baden (Alemanha), aprisionado com personalidades em um hotel de luxo, vigiado e impossibilitado de se deslocar, ele acaba por beirar a depressão.
A experiência leva o trabalho a sofrer mudanças. Primeiro, entre em uma fase de pinturas de vegetação, com cores fauvistas e criações que lembram o Brasil, para depois embarcar em composições mais abstratas até mergulhar na abstração plena. O artista se embrenha na geometria, mas passa longe do concretismo e continua a fazer muito sucesso em Paris. Durante a guerra, ele conhece Raymonde, por quem se apaixona e com quem acaba por se casar, selando a permanência na capital francesa.
As viagens ao Brasil eram constantes e longas, Cícero Dias podia ficar muitos meses em Pernambuco ou no Rio, mas Paris era a base. Por lá, ele deixou obras em muitas coleções, incluindo a de Claude Picasso, neto do pintor espanhol. A curadora Denise Mattar precisou garimpar em todo o Brasil e no exterior para reunir as obras da exposição.
Cícero Dias — Um percurso poético
Visitação até 3 de abril, de quarta a domingo, das 9h às 21h, no Centro Cultural Banco do Brasil ( SCES Trecho 2, Lote 22 – Asa Sul). Entrada franca
Entrevista Denise Mattar
Por que Cícero Dias era tão diferente?
Depois da guerra, o trabalho dele mudou muito. O que houve?
Ele faz o trabalho mais selvagem da carreira, usa cores dignas dos fauves, cores berrantes, uma construção insólita propondo até charadas para o público. E aí, ele faz essa série curiosa do Guarda chuva ou instrumento musical?, Moça ou castanha de caju?, Mamoeiro ou dançarino?. São quatro obras e elas nunca tinham sido reunidas, nunca se tinha conseguido, numa exposição, reunir as quatro obras. A gente conseguiu. Digamos que é a segunda grande fase dele.
Na volta para Paris, depois da guerra, ele embarca em uma nova fase. Por que ela é importante?
Ele volta para Paris chamado pelo Picasso e tem uma fase de transição, conhecida como fase vegetal, na qual ele sai da figuração e vai para a abstração. Ele trabalha basicamente nos verdes, a gente ainda vê a vegetação até que ela vai desaparecendo. E aí tem a abstração plena. E faz o maior sucesso com essa abstração plena. O Cícero é o único artista brasileiro que morou na Europa e tem, de fato, uma inserção no circuito europeu. Ele vendia bem porque o trabalho era um abstracionismo geométrico que não tem nada a ver com o concretismo. Tem muito mais ritmo, muito mais cor, é mais dinâmico, muito mais brasileiro, com cores nossas. Ele desenvolve esse trabalho por um período bastante longo. O Cícero Dias é o primeiro artista brasileiro a trabalhar com abstração. Ele faz os primeiro painéis abstratos da América Latina, em 1948 no Recife.
Obras comentadas
Ilustração de Casa Grande & Senzala
Cícero Dias era muito amigo de Gilberto Freyre. Quando Freyre publicou a primeira edição do Casa Grande & Senzala, a capa foi ilustrada pelo artista, que deu vida aos recantos do Engenho Noruega, uma das várias fazendas de sua família. Escritor e artista foram juntos às ruínas do engenho para medir terreno e instalações. As informações foram enviadas a Carlos Leão, que fez a planta do terreno, depois preenchida com as narrativas de Cícero.
Gamboa do Carmo no Recife
Uma jovem prostituta mestiça aparece sentada numa cama em uma composição na qual o artista faz um contraponto entre essa mulher melancólica e toda uma feminilidade estampada na colcha bordada com renda que domina a cena. Quase todos os interiores de Cícero Dias têm as janelas abertas através das quais se vê o casario colorido do Recife.
É a passagem para a abstração, um trabalho feito num momento em que o Cícero está fazendo uma mudança muito radical na obra dele. Ali ele mistura referências antigas e novas.
Perfil em filme
Para acompanhar a exposição, o Cine Brasília inclui na programação, a partir de amanhã, o documentário Cícero Dias — O compadre de Picasso, de Vladimir Carvalho. Em pouco mais de uma hora e meia, o cineasta narra a vida do pintor desde o nascimento e o cotidiano no engenho Jundiá até os últimos dias, em Paris. Pontuado por depoimentos como o do artista Francisco Brennand, do marchand Jean Boghici e da filha de Dias, Sylvia, o filme traça um perfil afetuoso da obra e da personalidade do pernambucano.