A cena do blues sempre foi underground e, talvez por isso, ela não seja tão evidente para os olhos e ouvidos desatentos. No entanto, ela existe no Planalto Central e sobrevive com muita vitalidade há mais de três décadas. De nomes como o do gaitista Engels Espíritos e do guitarrista Celso Salim (hoje morando nos Estados Unidos), a jovens como o guitarrista Walter Muganga, o blues brasiliense tem de tudo: música autoral, blueseiros de todas as idades e uma atuação que se espalha, sobretudo, pela periferia.
Um grupo no WhatsApp intitulado Brasília Blues reúne mais de 200 pessoas, de produtores a músicos. “Lá você vê a quantidade de pessoas. A cena, a meu ver, melhorou muito, tem muito sangue novo”, constata Jussara Duré, produtora da Brazilian Blues Band e uma das fundadoras do Clube do Blues, criado há 18 anos para promover o gênero na cidade.
A Brazilian Blues Band, que toca em 27 de julho no Espaço Cultural Renato Russo, como parte do projeto Talkin Blues, é uma das veteranas da cidade. Fundado por Luiz Kaffa, também um dos idealizadores do Clube do Blues, o quinteto comemora 25 anos com uma série de shows intitulados Bebendo blues e comendo jazz, no qual convida bandas e instrumentistas da cidade. Também foi do clube a ideia do festival República Blues, responsável por reunir 20 mil pessoas no gramado da Funarte, em abril passado, e a criação do República Blues nos Olhos, uma espécie de filial em Olhos d´Água (GO).
Luiz Kaffa fundou a Brazilian Blues Band embalado pela escuta de Blues Etílicos, Celso Blues Boys e Oficina Blues, bandas engajadas na produção autoral em português. “Acredito na amplitude poética do português, que se relaciona bem com a temática e o ambiente do blues. Tem muita gente que faz blues em português, e muito bem. Mas sei que muitos têm dificuldade. Nós conseguimos nos três álbuns autorais que lançamos”, conta.
Em 2003, com Rapadura com bourbon, a banda queria mostrar as possibilidades do diálogo entre o português e o blues. Depois vieram 500 gramas blues (2010) e Indigne-se, lançado este ano e com um tom mais político em letras sobre relações amorosas e sociais. “Sempre houve muito talento musical de blues em Brasília. O clube tenta, nesses 18 anos, sempre colocar grupos brasilienses nos festivais. Temos preferência por bandas autorais, mas mesmo as que atuam como cover, temos prestigiado nos nossos eventos. E não para de aparecer jovens talentos, instrumentistas e compositores”, garante Kaffa.
Guerrilha
Para o guitarrista e vocalista paraense Marcius Cabral, Brasília se tornou um oásis. Ele desembarcou na cidade em 1995, de passagem, antes de embarcar para a Europa para acompanhar a esposa em uma pós-graduação. Quando se deparou com a existência de uma cena de blues na cidade, protagonizada por gente como Engels Espíritos, Lu Blues e Adriano Faquini, decidiu ficar. “Aqui tinha todas as condições que eu procurava, fiquei muito empolgado. Celso Salim tinha 16 anos e era o melhor guitarrista de blues”, conta. Hoje, Cabral é um dos veteranos. Ao longo dos anos, além de tocar, dá aulas, faz palestras e sempre vive da música.
Agora, brinca que faz blues de guerrilha. Com o Marcius Cabral Trio, o guitarrista tem ponto fixo na El Baron Barbecue, em São Sebastião. “A gente toca aqui, porque aqui não tem blues, não tem festival, não tem restaurantes elegantes que toquem esse tipo de música, as pessoas não têm acesso a esse tipo de cultura mais sofisticada que se faz onde a elite mora, por isso fazemos questão que seja aqui”, avisa o guitarrista, que observa com curiosidade o crescimento do interesse pelo gênero.
“Tem muita gente tocando e ouvindo blues na cidade. Esse estilo envolve uma subcultura que tem um vestuário próprio, instrumentos próprios e conceitos estéticos e artísticos, como um movimento mesmo. E percebo que essa tribo está grande. Tem uma galera que já está bem firme no mercado que está com seus 25, 35 anos. E tem uma outra já surgindo”, destaca Cabral.
De olho nessa tendência, o antropólogo e pesquisador Alexandre Rocha montou o projeto Talkin Blues, um curso de dois meses ministrado gratuitamente, todos os sábados, no Espaço Cultural Renato Russo. A ideia é contar a história do gênero e, depois, apresentar um pocket show com artistas da cidade. “Conto a história do blues partindo de algumas premissas, alguns clichês que me incomodam, como o que diz que blues é tudo igual, que é a raiz do rock. Alguns têm até uma verdade, mas são muito limitantes”, explica o pesquisador, que também é radialista e idealizador do programa Estilo blues, na Rádio Verde Oliva.
O baixista Célio de Moraes começou a tocar nos anos de 1990 e vive de música até hoje. O dinheiro não é muito, mas dá para pagar as contas. O mais difícil, na verdade, é apresentar o trabalho próprio. “Tocar um som autoral é a coisa mais difícil, é cabuloso. Tem que ter muita divulgação” analisa. Apesar das dificuldades, há público, espaço, e bandas por aí. “Continua financeiramente meio defasado, mas a gente tem conseguido fazer”, garante Célio. Embora toque bastante no Plano Piloto, ele se apresenta mais nas cidades do DF e repara que o número de espaços dedicados ao gênero aumentou.
Lugares como Gates Pub, na Asa Norte; Blues Pub e Butiquin Blues, em Taguatinga, foram polos de disseminação da cultura blueseira, mas não existem mais. Outros, como Feitiço Mineiro, o UK Brasil e o Bar do Kareka (Kaixa D’água), resistem ao lado de espaços mais novos, como o Hop Capital Beer, no SIA, e o Road Stop Beer, em Taguatinga. Lá, Célio, que já tocou com Celso Salim e com a Brazilian Blues Band, realiza, toda semana, o evento Terça do Blues. Terno Elétrico, sua primeira banda, está na ativa até hoje e tem um novo disco pronto. Agora, o músico procura um selo que se interesse pelo material.
SUB
Novas gerações nos palcos
Aos 27 anos, nascido e criado no Núcleo Bandeirante, Victor Abreu se juntou ao baterista Pedro “Diux” Ronan e ao tecladista Ronélio Lustoza há 10 anos para formar a Procurados Blues Band. Os três estudaram música e cresceram no Núcleo Bandeirante, mas não vivem de tocar. Cada um tem uma profissão, e o blues entra para satisfazer a necessidade criativa. A banda surgiu por influência do blues clássico, mas o trio procura sempre fazer uma releitura do repertório e, por vezes, pode acabar com algo de Freddy King ou Eric Clapton em ritmo de groove. Para Abreu, esse é um gênero que sempre encontra abrigo. “A música é muito cíclica, e Brasília está tendo uma galera diferente, que curte uma música melhor. O blues tem muito essa interação da plateia com o público e uma das coisas que faz se apaixonar é a vitalidade que essa música tem: você vê o cara suando no palco, fazendo careta, fazendo um brinde”, acredita.
Abreu lembra que o blues é música de periferia e a configuração de Brasília ajuda nesse detalhe. A lei do silêncio acabou com a música nos bares e empurrou a música ao vivo para outros espaços. “Tá difícil tocar no Plano e o pessoal está saindo do setor central da cidade. A cidade é dinâmica e acabou entendendo que o lugar da música é fora do Plano Piloto”, repara.
Em 8 de junho, Marcius Cabral fazia sua apresentação no projeto Talkin Blues quando percebeu dois colegas de profissão em meio ao público e não conteve o comentário: “Senhoras e senhores, nesta noite estão presentes na plateia dois extremos do blues brasiliense: Mr. Bartô Blues e Walter Muganga!”. Bartô Blues está na estrada há 27 anos, 24 só de blues. Aos 32 anos, Walter Muganga descobriu o gênero há pouco menos de uma década.
Ambos, porém, gozam do mesmo reconhecimento não de Cabral, mas de toda a cena blueseira do DF. “Eu me sinto lisonjeado quando chego a algum lugar, tem alguém tocando e a pessoa me trata bem, me chama pra tocar. ‘O novo bluesman’, eles dizem”, alegra-se Muganga, que vive dando canjas nos shows de Bartô. “O blues, por ser uma cena que está se reafirmando, tem uma galera que se juntou e é muito unida, e tem a juventude fazendo parte da cena”, analisa o guitarrista, que começou a tocar em 2010, incentivado pelo amigo Cleiber Mota, que, ironicamente, é vocalista de uma banda de hardcore, a Desonra.
Cleiber, conhecedor aplicado do gênero, lhe apresentou vários discos e artistas. “Ele me mostrou o que era blues, uma coisa que eu já conhecia e gostava, mas não sabia o que era”, lembra Muganga, que passou a pesquisar e fundou, em parceria com o amigo, a banda Casa Velha, da qual foi guitarrista até 2013.
A iniciação de Bartô no gênero também se deu por meio de amigos. Durante uma viagem à Chapada dos Veadeiros para realizar um show, ele ouviu no rádio do carro uma fita de Celso Blues Boy, ícone maior do blues brasileiro. “Depois desse dia, fiquei meio perturbado com blues, a forma dele (Celso Blues Boy) de cantar e tocar”, lembra o músico.
Se de uma geração a outra do blues, as histórias e alegrias são parecidas, as agruras também são as mesmas. Os músicos notam uma expansão da cena na cidade e reconhecem, com orgulho, sua contribuição para formar público e abrir portas. Mas todos esbarram nas mesmas dificuldades: falta de infraestrutura para tocar com banda, o que obriga a maioria deles a migrar para formatos solo, e a dificuldade em conseguir bons cachês. Por mais moderno e popular que o blues esteja se tornando, certas tradições (negativas) parecem nunca acabar.
Na estrada
Arcablues
Banda formada em 2014 que busca reverenciar as raízes arcaicas do blues ao mesmo tempo em que, como a Arca de Noé, sobrevive ao dilúvio e chega aos novos tempos com seu blues do cerrado.
Blue Drive
Devotada ao blues norte-americano, a banda investe em instrumentos clássicos do estilo e promove viagem pela história do blues, do Delta do Mississipi à Londres dos anos 1960.
Bluescificação
Fundada em 2003 no Gama, a banda lançou, em 2015, o álbum Parte, cujas letras autorais refletem críticas sociais e comportamentais. Também toca clássicos e chegou a levar o blues brasiliense para a França.
Cascavelhos
Idealizada há mais de 10 anos na cidade de São Sebastião, a banda só saiu do papel em 2017. Formada por um grupo de jovens entusiastas das ratbikes, o grupo manda um blues sujo e pesado calcado em rock pauleira.
Conexão Chicago
Concebida em 2017, a banda se inspira no blues elétrico de Chicago (EUA), não só na sonoridade e escolha do repertório, mas também no visual. As apresentações foram em palcos de grandes festivais.
Márcia Campus
Cantora visceral e com pegada roqueira, passou pelas bandas Red Mustang e Arcablues. Agora, se apresenta com a banda Campus Band e faz parte do projeto Women in Rock.
Procurados Blues Band
Organ trio brasiliense com 10 anos de estrada, dedicado a releituras de canções que marcaram época com blues, soul, r&b e rock’n’roll. Um organ trio é um conjunto formado por órgão, bateria e guitarra (ou saxofone).
Renato de Paola
Ex-aluno da Escola de Música de Basília, passou por diversas bandas ao longo de 10 anos e agora coloca sua guitarra a serviço de composições de grandes artistas do blues, rock e country.