Muitas famílias, algumas com lágrimas nos olhos, desciam na manhã de ontem do Bairro Alto da Serra levando consigo o pouco que conseguiram salvar de seus pertences após a chuva devastadora que atingiu a cidade histórica de Petrópolis, na região serrana do Rio de Janeiro, a partir da tarde de terça-feira e provocou mais de 200 deslizamentos de terra. Ao fim do primeiro dos três dias de luto oficial decretados pela prefeitura, o número de mortos chegou a 104. O número de desaparecidos não foi divulgado pela equipe do Corpo de Bombeiros, mas um cadastro feito pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro à tarde mostrava que pelo menos 35 pessoas eram procuradas. Pelo menos 25 pessoas foram resgatadas com vida e mais de 370 estão desabrigadas ou desalojadas.
Na terça-feira, a cidade registrou 240 milímetros de chuva em duas horas. A quantidade é mais do que o esperado para todo o mês de fevereiro, de 238mm. Várias ruas da cidade foram alagadas e pontos de acolhimento para pessoas que vivem em locais de risco foram abertos. Com o município em alerta máximo, a administração municipal decretou estado de calamidade pública, enquanto várias frentes de trabalho atuavam nas buscas, reconhecimento de vítimas, desobstrução de vias e apoio às famílias. Na cidade desde o dia do desastre, o governador Cláudio Castro comparou o cenário a “uma guerra” e pediu ajuda do governo federal. Amanhã, o presidente Jair Bolsonaro, que está na Rússia, e parte de sua equipe vão sobrevoar Petrópolis.
“É uma coisa que ninguém esperava. Foi desesperador, muito triste”, afirmou Elisabeth Lourenço, carregando duas grandes bolsas nas quais colocou o máximo de roupa possível, enquanto descia com cuidado uma ladeira no bairro, escorregadia devido à lama trazida pela chuva. Como todos os outros moradores do bairro, essa manicure de 32 anos teve que abandonar sua casa diante do temor de novos deslizamentos. “Na hora da chuva, desceu muito barro e os galhos das árvores caíram em cima da parte de trás da minha casa”, contou.
A poucos metros dali, a imagem era de caos. Uma enorme parte da encosta ficou coberta de barro misturado com escombros de casas e restos de telhado. Segundo a Prefeitura de Petrópolis e o Corpo de Bombeiros, cerca de 80 casas foram atingidas por quedas de barreiras.
As equipes de resgate removiam ontem a lama e os escombros para tentar encontrar sobreviventes, enquanto os moradores observavam a cena, incrédulos, se assustando a cada barulho mais alto, como a passagem de helicópteros. “Eu estava jantando quando começou a tempestade. Meu irmão veio me buscar e me disse: ‘Temos que ir, o morro está descendo'”, explicou Jerônimo Leonardo, de 47, cuja casa, que permaneceu relativamente conservada, fica ao lado da ladeira soterrada pelo deslizamento de terra.
Carros deformados no leito de rio em Petrópolis — Foto: Reprodução/TV Globo
Todos os moradores de Alto da Serra, um bairro popular erguido na encosta de um morro a poucos minutos do centro histórico da cidade, foram obrigados a deixar suas casas. O destino deles: a Igreja de Santo Antônio, a 10 minutos de caminhada dali, no alto de outro morro.
“Água na cintura”
Da praça desta pequena igreja colonial com fachada azul-celeste é possível ver a dimensão da destruição causada pela avalanche de terra, em meio à neblina e à possibilidade de novas chuvas, que manteve a cidade em alerta ontem. A igreja recebeu dezenas de famílias desabrigadas, carregando bolsas e malas, e muitos voluntários que levaram doações.
“Foi logo depois da tragédia, da queda da barreira, (…) que as pessoas começaram a chegar aqui”. “Creio que chegaram quase umas 150, 200 pessoas, famílias com crianças”, explicou o padre Celestino, responsável pela paróquia. Atrás da igreja, foram colocados colchões no chão da sala principal da paróquia para atender aos desalojados.
“Não dormi nada durante toda a noite”, explicou Yasmin Kennia Narciso, uma assistente escolar de 26, enquanto amamentava Luana, sua bebê de 9 meses, sentada em um colchão. A jovem, que vive com outra filha, de 6, e seus avós, não pôde sair de sua casa antes das 23h. “Tentamos sair antes, mas tinha muita pedra no meio do caminho e estava tudo inundado. A água estava na cintura e tivemos que esperar o nível baixar”, contou a jovem. “Não tenho notícias de vários vizinhos, uma senhora mais velha e seus três filhos pequenos que moravam alguns metros mais acima ficaram soterrados pelo barro.”
Imagem de Castelânea, em Petrópolis, na Região Serrana do Rio — Foto: Lívia Torres/ TV Globo
Nas instalações da igreja, Yasmin só conseguiu trocar as fraldas de sua filha com as doações que chegaram de madrugada. Na praça do templo religioso, diversos voluntários descarregavam garrafas de água de uma caminhonete, enquanto outros separavam as roupas. “Você pode me dar um tênis?”, preguntou um menino, descalço e com as roupas sujas de lama. As vítimas agora ficarão em compasso de espera para saber se algum dia poderão retornar para suas casas, caso elas ainda estejam de pé.
Auxílio
O governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, informou ontem que o custo do primeiro auxílio aos moradores de Petrópolis prejudicados pelo temporal será bancado pelo governo do estado. Ele disse, no entanto, que está em entendimentos com o governo federal para um aporte de recursos para a reconstrução da cidade.
Em entrevista concedida a jornalistas brasileiros em Moscou, Bolsonaro anunciou que sobrevoará Petrópolis amanhã, após regressar de viagem. O presidente disse que conversou com os ministros da Economia, Paulo Guedes, e do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, para tratar de um crédito especial para atender as vítimas. “Como é praxe nessas questões, há liberação do fundo de garantia (FGTS) e recursos para a reconstrução de obras emergenciais para restabelecer a transitabilidade na região”, detalhou.
Base de apoio
A Prefeitura de Petrópolis montou uma base no ginásio da Universidade Católica de Petrópolis (UCP), no Bairro do Bingen, para reunir os equipamentos e caminhões que estão sendo utilizados nas operações na cidade. O prefeito Rubens Bomtempo disse que a intenção é buscar mais agilidade para devolver a normalidade à cidade. Mais de 400 militares do Corpo de Bombeiros atuavam ontem em 44 pontos atingidos.
“A cidade perdeu a sua capacidade de mobilidade urbana. Então, a gente precisa muito, nesse momento, que as pessoas saiam de casa somente se for necessário, para a gente poder atuar o mais rapidamente possível. Serão dias difíceis que a gente vai ter que enfrentar, e a gente vai ter que fazer esse enfrentamento junto”, apelou o prefeito em um vídeo publicado no seu perfil no Facebook.
‘Força-tarefa’ da solidariedade
Órgãos públicos e associações de diversos setores anunciaram medidas para reunir doações e ajudar no atendimento às vítimas da chuva torrencial que atingiu Petrópolis. O Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro organizou um mutirão com os juízes para agilizar e ordenar os documentos necessários para a identificação e liberação de corpos no Instituto Médico-Legal (IML). Por causa dos danos causados à infraestrutura da cidade, os fóruns não funcionaram ontem, e os prazos processuais foram suspensos.
Equipes de resgate procuram sobreviventes em meio à lama e escombros de um deslizamento de terra em Petrópolis (RJ). Temporal em 15 de fevereiro arrasou a cidade, deixando mortos e desaparecidos
A Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro enviou uma unidade móvel com defensores e servidores para o IML com o objetivo de acompanhar o trabalho de identificação dos corpos. Além disso, foram montados postos de atendimento no Centro de Petrópolis e no distrito de Itaipava.
A sede da Defensoria Pública, no Centro do Rio de Janeiro, está recebendo doações de itens de higiene pessoal, limpeza, alimentos e roupas infantis e para adultos, além de água potável, máscaras e álcool em gel. O endereço é Avenida Marechal Câmara, nº 314, portaria.
Prefeituras de outros municípios também organizaram pontos de coleta de doações para envio às vítimas das chuvas em Petrópolis.
Na capital, doações podem ser entregues nas 10 Coordenadorias de Assistência Social (CAS), das 8h às 17h. O endereço de cada um dos pontos de coleta do município do Rio pode ser consultado na página da Secretaria Municipal de Assistência Social. Em Cabo Frio e Teresópolis, também foram organizados pontos de coleta de doações em diferentes bairros. A Associação de Supermercados do Estado do Rio de Janeiro (Asserj) informou que também está mobilizando seus associados para a doação de alimentos e itens de higiene para os sobreviventes da tragédia.
Além da doação de itens básicos, há mobilização também para assistência psicológica aos moradores da cidade. O Sesc RJ disponibilizou o número telefônico (21) 3138-1189 para que familiares e amigos de vítimas, pessoas feridas e outros atingidos busquem atendimento psicológico. Ao entrar em contato, os interessados passam por uma triagem e podem agendar um horário para atendimento.
O Sesc também está recebendo doações nas duas unidades em Petrópolis (Sesc Nogueira e Sesc Quitandinha), e outras seis unidades do estado: Niterói, Teresópolis, Nova Friburgo, São João de Meriti e no bairro da Tijuca, na capital.
Frente fria e instabilidade provocaram a tempestade
A passagem de uma frente fria pelo oceano, em conjunto com as instabilidades geradas pelo aquecimento diurno, mais a disponibilidade de umidade foram as causas da chuva muito forte no primeiro distrito do município de Petrópolis entre a tarde e a noite de terça-feira, explicou ontem a Defesa Civil municipal. No Alto da Serra, foram registrados 125,8mm por hora e o acumulado pluviométrico atingiu 259,8mm em quatro horas, em São Sebastião. “Durante a madrugada e manhã de quarta-feira não houve registro de chuva significativa na cidade”, informou o órgão em nota.
De acordo com a Secretaria de Defesa Civil de Petrópolis, foram registradas 258 ocorrências, sendo 213 por deslizamentos e 45 entre desabamentos, quedas de muros e árvores. Conforme a Defesa Civil, até o início da tarde havia 372 pessoas acolhidas em 33 pontos de apoio instalados em escolas da rede pública. As aulas foram suspensas ontem.
As localidades onde ocorreram registros de maior gravidade, segundo a Secretaria de Defesa Civil de Petrópolis, são 24 de Maio, Morro da Oficina, Caxambu, Sargento Boening, Moinho Preto, Rua Uruguai, Rua Washington Luiz, Coronel Veiga, Vila Militar, Vila Felipe, Avenida Portugal e Rua Honorato Pereira.
Segundo o especialista em drenagem urbana e professor da Escola Politécnica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Matheus Martins, a chuva que provocou a tragédia teve volume semelhante ao registrado nos eventos de 2011 na região serrana. “O pico da chuva que atingiu Petrópolis na tarde de terça-feira no posto do Alto da Serra, teve um intensidade máxima de 199,2mm/h. Foram quatro horas de chuva. Em Nova Friburgo Friburgo, em 2011, choveu 281,6mm em oito horas, no Posto Ypu. A intensidade máxima registrada foi de 88mm/h no posto Olaria. Na chuva de Petrópolis de terça-feira, o pico foi de 200 milímetros por hora, enquanto em 2011 o pico máximo foi de 90 milímetros”, explicou, em entrevista à CNN Brasil.
Ele destaca que Petrópolis está localizada em uma região bastante úmida, onde chove acima da média de outros pontos do Rio de Janeiro, e que a formação da cidade também influencia nesses eventos. “A topografia é bem propícia a esse tipo de evento. Uma inundação rápida com alta velocidade. O que chamamos de enxurrada”.
Devastação em números
104 corpos foram resgatados até a última contagem de ontem
35 pessoas foram cadastradas como desaparecidas pelo Ministério Público do Rio
258 ocorrências foram registradas em 24 horas
213 deslizamentos foram registrados pela Defesa Civil
45 desabamentos ocorreram na cidade devido ao temporal
Outras tragédias
Pelo menos outros três desastres climáticos atingiram diferentes regiões do Rio de Janeiro desde 2009, provocando a morte de mais de mil pessoas. O maior deles, em número de vítimas, ocorreu em 2011, também na região serrana, atingindo Nova Friburgo e mais quatro cidades, entre elas Petrópolis. Confira abaixo.
REGIÃO SERRANA
Desastre climático de grandes proporções atingiu a região serrana do Rio de Janeiro em 11 de janeiro de 2011, matando 918 mortos e deixando 100 desaparecidos. Aproximadamente 35 mil pessoas perderam suas casas ou tiveram que sair devido ao risco de desabamento. O município mais atingido foi Nova Friburgo, com 451 mortes. Teresópolis, Petrópolis, Sumidouro e São José do Vale do Rio Preto também foram afetados. Além de deslizamentos, rios também transbordaram. Casas, comércios, pontes e ruas ficaram destruídas.
NITERÓI
Em 7 de abril de 2010, 48 pessoas morreram em um deslizamento de terra no morro do Bumba, favela localizada em Niterói. A tragédia deixou mais de 200 pessoas desaparecidas. Cerca de 3 mil pessoas foram atingidas pelo desastre. Pelo menos 300 bombeiros participaram do trabalho de resgate. As casas foram construídas em cima de um antigo lixão desativado em 1982. Cerca de 200 imóveis foram construídos no local. O risco de deslizamentos na região já havia sido sinalizado por pesquisadores desde 2004.
ILHA GRANDE
Em 31 de dezembro de 2009, 53 pessoas morreram depois que fortes chuvas atingiram a cidade de Angra dos Reis, na região do estado conhecida como costa verde. Na Enseada do Bananal, que fica na Ilha Grande, uma pousada foi soterrada. A maior parte dos deslizamentos aconteceu durante a madrugada.