Manifestações culturais tentam colocar em primeiro plano aqueles que, até então, eram mantidos em cantos obscuros da sociedade
O Brasil é o país que mais mata transsexuais no mundo. O dado foi divulgado em uma pesquisa da ONG Transgender Europe (TGEU). A violência homofóbica faz com que muitas pessoas trans prefiram a obscuridade. Não se revelam por completo e, mesmo a duras penas psicológicas, mantém-se no gênero em que nasceram biologicamente, mesmo não se identificando com ele. Não são raros os casos de quem oprime desejos, vivências e personalidade por pressão social e medo de represálias. Outras, por outro lado, rumam em sentido oposto e rompem padrões. A atitude, um tanto quanto revolucionária, ainda não é uma unanimidade, mas tem acontecido com muita frequência no segmento cultural.
Transgênero formada em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em Brasília desde 2012, Luana Morena Pinheiro encaixa-se no último grupo. Atriz e professora, com um tino literário que a acompanha desde cedo, a escritora teve o romance autoral A revolta dos feios aceito pela Chiado, a editora que mais cresce em Portugal, e uma das maiores nos países de língua portuguesa.
Um dos focos do enredo é o dançarino profissional Tião, vítima de bullying ao tentar entrar em uma banda por conta da aparência. Diante da resposta negativa, o personagem convida outras pessoas que não se encaixam no padrão de beleza valorizado pela sociedade para promoveram uma revolução social. A revolta vira guerra civil. De certa forma, é uma metáfora sobre ser diferente em um mundo onde a pasteurização ainda é imposta como regra. “Claro que a beleza conta. Todo mundo sabe disso e ninguém fala nada”, critica a autora.
Para que a obra seja publicada, Luana Morena, atualmente desempregada, está realizando venda antecipada de alguns exemplares via crowdfunding. “Se tiver mais de 3 mil cópias ele será traduzido para o inglês e o espanhol”, comemora. Luana Morena também finalizou o roteiro de um longa chamado Traumas eficazes, onde a questão trans é tratada de maneira mais aberta, ainda que por meio de ficção científica. O texto discorre sobre uma travesti que se submete a um tratamento revolucionário para cura de traumas psicológicos, como o abuso sexual sofrido na infância. “Nós, trans, precisamos nos ver no cinema, e essa pode ser uma possibilidade”, afirma.
“A criação desse roteiro influenciou muito minha vida. Passei 20 anos sendo o Paulo, que é gay, mas não queria que as pessoas soubessem disso. Eu me enganei durante essas duas décadas. Comecei a trabalhar a noite e pegava ônibus com travestis. E então veio uma crise existencial. Voltei a ser Luana”, comenta.
“Com meu novo nome social eu quebrei as amarras. Apesar do medo que sinto, acho que temos que mostrar a cara mesmo. Não nos acovardar por causa do preconceito”, diz. Ações afirmativas como a aprovação do uso do nome social pelo Governo de Brasília, em decreto assinado pelo governador Rodrigo Rollemberg em 31 de janeiro, ajudam a diminuir as discrepâncias entre trans e cisgêneros, termo usado para qualificar o indivíduo que se identifica com o gênero com o qual nasceu, em todos os aspectos. Luana Morena engrossa a lista de pessoas beneficiadas com a medida.
Para contribuir
O livro A revolta dos feios encontra-se em pré-venda pelo na página criada por Luana Morena no site Kickante. É necessário fazer a venda de 250 exemplares para que a Chiado edite o livro. Ao custo de R$ 32, a obra tem previsão de entrega em junho deste ano.
Outros gritos contra o preconceito
Nos palcos
Em cartaz até 5 de março (com pausa no carnaval), a peça Gritos, da companhia franco-brasileira Dos à Deux, dedica boa parte do espetáculo a um poema gestual com a transsexual Louise em destaque. Criada por André Curti e Artur Luanda Ribeiro, a peça coloca o espectador na pele da jovem dividida entre os cuidados com a mãe idosa e os anseios de ser mulher, mesmo que tenha nascido no corpo masculino. “Muita gente comenta que o espetáculo é necessário. Isso é uma grande conquista, quer dizer que está transformando as pessoas. Está trabalhando o preconceito. Obviamente, aquilo se reverte no público, que olha para o transsexual de uma outra maneira”, declarou Artur Luanda Ribeiro. Já no CCBB do Rio de Janeiro, a partir de 2 de março, o ator Luis Lobianco será Gilberta, brasileira vítima de transfobia e torturada até a morte por um grupo de adolescentes em Portugal, em 2006.
Mural democrático
Até 26 de fevereiro, a mostra Ozi – 30 anos de arte urbana no Brasil, em cartaz na Caixa Cultural Brasília, tem um importante diferencial. Além de um apanhado da carreira do artista urbano Ozi, há um mural na fachada do espaço cultural feito em parceria com alguns grafiteiros e grafiteiras da cidade (como Omik, Toys e Brixx Furtado) e de alunos da oficina de estêncil Transgraffiti, ministrada por ele apenas para transgêneros da cidade. “A felicidade é libertadora”, diz uma das pinturas. Segundo o artista, foi uma das maneiras de mostrar que a arte urbana não é homofóbica. A iniciativa teve parceria do CREAS da Diversidade, do Ibrat (Instituto Brasileiro de Transmasculinidade), do coletivo Afrobixas, entre outras organizações que militam pela igualdade e respeito aos trans.
Capa de revista
Na semana passada, a revista Vogue na versão francesa anunciou a primeira capa com uma modelo trans. A publicação sairá em março. “Estamos mudando a cara da moda e desconstruindo o preconceito”, escreveu a editora-chefe da revista, Emmanuelle Alt. Para orgulho nacional, a top escolhida foi Valentina Sampaio, cearense que foi destaque na última edição do São Paulo Fashion Week. A modelo está acostumada a inovar. No ano passado, foi a primeira trans a representar uma gigante da indústria da beleza mundial em terras brasileiras.
Nas telonas
» Com previsão de estreia em 30 de março, o longa A Glória e a Graça conta com Carolina Ferraz como a travesti Glória. Em vez do caricata, a personagem da atriz é bem-sucedida. O filme tem produção e direção de de Flavio Ramos Tambellini, de Malu de bicicleta.