A dona de casa Bárbara de Oliveira, 32, teve seis filhos. Quatro moram com ela, sendo que três foram registrados pelos pais. Já uma das meninas, de 10 anos, não possui o sobrenome paterno.
O genitor, segundo Bárbara, se nega a reconhecer a filha. A mulher, que vive na periferia do Recife, entrou na Justiça e aguarda um teste de reconhecimento de paternidade.
A filha de Bárbara é uma das milhares de crianças brasileiras registradas sem o sobrenome do pai todos os anos.
Só nos sete primeiros meses deste ano, 100.717 crianças foram apresentadas em cartórios por mães solo. É o maior volume desde 2016, quando a Arpen (Associação dos Registradores de Pessoas Naturais) do Brasil passou a recolher dados sobre o tema.
Neste ano, também foi registrado o menor número de nascimentos para um primeiro semestre desde 2016, pouco mais de 1,5 milhão. Isso significa que 6,5% do total de recém-nascidos entre janeiro e julho de 2022 possuem pais ausentes.
A porcentagem é maior que os 5,8% do mesmo período de 2019, quando 99 mil recém-nascidos foram registrados por mães solo até julho, o maior número de notificações até então. No primeiro semestre de 2016, haviam sido 5,17%.
Para o presidente da Arpen, Gustavo Fiscarelli, os números mostram que há muito a evoluir quando se trata de responsabilidade paterna. “Pai e mãe são responsáveis pela criação dos filhos e possuem responsabilidades a serem compartilhadas. Obviamente, cada família vive uma realidade, mas são dados que podem embasar as políticas públicas”, diz.
Pernambuco, o estado de Bárbara, teve mais de 4.000 crianças sem o sobrenome do pai em registro até julho deste ano. No mesmo período, o estado de São Paulo, líder nas estatísticas, teve 17,4 mil.
A mulher foi acolhida pela Apemas (Associação Pernambucana de Mães Solteiras), uma das primeiras a se dedicar ao reconhecimento paterno no país. Além de amparo jurídico, o grupo oferece auxílio alimentar a Bárbara e seus filhos. O projeto foi idealizado pela advogada Marli Cristina da Silva, 60.
Quando tinha 29 anos, Marli, que nunca pensara em ser mãe, foi convencida pelo companheiro à época a ter um bebê. Uma semana depois de dar à luz um menino, ela foi abandonada pelo genitor. “Ele foi até a casa onde eu morava, disse que eu daria conta de criar a criança sozinha e sumiu”, conta.
Sozinha, Marli foi expulsa pelo cunhado do imóvel em que morava. Após semanas de casa em casa, se estabeleceu em uma residência na periferia do Recife e abriu um comércio para sustento da família.
Durante esse período, auxílios eram raros, mas o julgamento recorrente. “Me achavam a pior mulher do mundo, e o genitor do meu filho era, para as pessoas, um herói. Eu não entendia o porquê. Isso tornou muito difícil a experiência da maternidade para mim, acho que até hoje é”, diz.
Em outubro de 1992, ela fundou a associação de mães solo pelo desejo de que histórias como a dela não se repetissem, mas conquistar adeptas foi trabalho árduo. As mulheres se negavam a reconhecer a situação.
Marli não desistiu. Organizou encontros e começou a discursar pelo empoderamento das mães. Nos primeiros, o quórum era mínimo, mas a mensagem se disseminou. Em alguns meses, a advogada tinha um discurso e muitas histórias. Faltava a Justiça.
Até o início dos anos 2000, lutar pelo reconhecimento de paternidade não era tarefa fácil. Machismo e travas judiciais andavam juntos, diz Marli.
Apesar das dificuldades, a associação seguiu firme até que, em 2006, a Justiça pernambucana mudou sua jurisprudência e passou a apoiar a iniciativa. O primeiro mutirão de reconhecimento voluntário de paternidade do estado aconteceu naquele mesmo ano, com mais de 1.700 genitores reconhecendo seus filhos.
Desde então, as campanhas passaram a ser anuais, e iniciativas similares se repetem em estados como São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro.
Mesmo assim, os dados divulgados pela Arpen preocupam a Associação Pernambucana de Mães Solteiras, que credita o cenário ao pouco trabalho preventivo das autoridades e, mesmo quando há, ao preconceito ainda vigente contra mães sem companheiros, em especial as mais pobres.
“Meu sonho é que um dia não precisem mais da Associação das Mães Solteiras. Após tantos anos, o poder público poderia agir sozinho e investir mais nesse trabalho. Os dados mostram que precisamos de muita ajuda”, desabafa a fundadora da Apemas.
Reconhecimento tardio Assim como a Arpen, o IBDFAM (Instituto Brasileiro de Direito de Família) também mantém um levantamento sobre paternidade no Brasil. Nele, há também o número anual de reconhecimentos tardios desde 2016, quando 14.696 pais o fizeram.
O índice teve um pico em 2019, quando mais de 35 mil pais reconheceram seus filhos. O ano de 2020, início da propagação da Covid-19, marca uma queda, com quase 24 mil registros, a mesma projeção do instituto para este ano.
Márcia Fidelis, presidente da comissão nacional dos notários e registradores do IBDFAM, diz que a progressão negativa de crianças sem paternidade e a diminuição dos reconhecimentos podem ser explicados por dois fatores: pandemia e crise financeira.
“A diminuição da mobilidade social provocada pela pandemia fez com que puérperas postergassem o registro dos filhos. Por isso, entre 2019 e 2020, tivemos uma diminuição de registros. Posteriormente, a crise financeira pode ser o fator preponderante para o afastamento paterno”, declara Fidelis.
Ela diz ainda que as as ações voltadas ao incentivo do reconhecimento, além da edição de normas que desburocratizam os procedimentos de inclusão de paternidade, tanto biológica quanto socioafetiva, são as providências mais promissoras para mudar o quadro atual. “Privilegiar a formalização de parentescos originados da socioafetividade é muito mais efetivo do que impor as responsabilidades de um reconhecimento de vínculo biológico não desejado”.
A partir de 2012, o reconhecimento de paternidade passou a ser autorizado diretamente nos cartórios de registro civil, não sendo mais necessária decisão judicial nos casos em que todas as partes concordam com a resolução.
Quando a iniciativa for do próprio pai, basta que ele compareça ao cartório com a cópia da certidão de nascimento do filho, sendo necessária a autorização da mãe ou do próprio filho, caso seja maior de idade.
Caso o pai não queira reconhecer o filho, a mãe deve indicar o suposto genitor no próprio cartório, que comunicará aos órgãos competentes para que seja iniciada a investigação de paternidade.