Durante minha infância eu morava num lugarzinho remoto, longe de tudo e todos, completamente dentro do mato. Era uma casa de taipa, coberta de palha, sem luz elétrica e conforto. Faltava tudo, desde o mais básico, de coisas materiais a afeto. Os donos das terras davam um pedaço de chão para as pessoas morarem e esse mesmo pedaço de chão servia para uma plantação de subsistência na qual parte da colheita ficava para eles. Lembro que meu pai viajava para Brasília em busca de trabalho e minha mãe ficava comigo e meus três irmãos no Ceará, junto com meus avós. Eu não lembro da imagem dele dentro de casa.
Quando eu tinha cinco anos, algumas pessoas procuraram minha mãe e deram a notícia de que meu pai havia sido assassinado com 19 facadas. Depois disso, ela nos largou, perdemos contato e ficamos sendo criados pelos meus avós. Meu avô foi a pessoa que substituiu todo mundo na minha vida, supriu o papel de todos eles. Já minha avó era uma pessoa muito grossa, dizia que éramos um peso. Uma vez meu tio, que morava em Fortaleza, foi nos visitar e meu avô lhe contou que eu era uma pessoa que sonhava alto e falava em estudar, ter uma vida melhor. Então fui levada para a capital, onde começou o primeiro grande sofrimento da minha vida.
Meu tio era alcoólatra e minha tia saia de casa de madrugada para trabalhar. Eu e minha prima ficávamos trancadas em casa o dia inteiro, e quando ele chegava estava bêbado e muito violento. Uma vez ele nos trancou no banheiro e eu só consegui ouvir os gritos da minha tia. Depois de um tempo, ela arrumou minha mochila e saiu comigo. Achava que iríamos passear, mas ela me jogou dentro da casa de uma mulher desconhecida e não voltou mais. Nesse novo lugar, aos sete anos, trabalhava e sofria sessões de tortura, violência física e emocional. Todo o sofrimento que uma criança pode passar, eu passei. Meu avô, muito pobre, quando foi me visitar na casa da minha tia descobriu que ela tinha me colocado na casa dessa pessoa. Então ele me buscou e me levou de volta para o interior.
E aí me descobri criança de novo: brincava, corria feliz. Foi quando a dona das terras me perguntou se eu tinha vontade de estudar, e respondi que sim. Os filhos dela estudavam numa cidadezinha chamada Ipu, também no Ceará, e eu morria de inveja. Ela perguntou se meu avô concordaria em me deixar ficar na casa da sobrinha dela, e disse que lá eles me colocariam na escola. Meu avô era analfabeto e ignorante, embora almejasse o melhor, não tinha condições de me oferecer. Quando ele perguntou se eu queria ir, meu olho brilhou. Então, aos nove anos, eu fui.
O sonho de me colocar na escola não foi real. Nessa casa, eles me cobravam serviço de gente grande. Tentei fugir, mas me trouxeram de volta. Como meu avô não tinha condições de ir me ver, ele achava que estava tudo bem e morreu sem saber. Depois, a dona da casa conseguiu outra pessoa para trabalhar e me enviou para a tia dela. Eu era uma criança assustada, eu não pude pedir socorro.
A nova casa tinha uma dona que, à princípio, era boazinha. Ela me comprava roupas e levava para passear. Mas tinha um marido que – e até então eu não conhecia o termo – era um pedófilo. Era agressivo e abusador. Matriculada em uma escola, se não fosse por ele, teria sido a vida que eu tinha almejado. Ali eu me sentia em casa, acolhida por ela e acabei achando que fazia parte da família. Mas algumas vezes eu deixava as responsabilidades de lado e ia brincar em uma pracinha. E é quando era cobrada por ele de uma maneira muito agressiva. Um dia estava assistindo desenho animado com os filhos dele, mas quando ele chegou, ficou agressivo e a confusão foi feita. A mulher dele não era uma pessoa ruim, mas juntos resolveram me devolver para minha avó.
Eu já não tinha mais vínculo de família, era muito rejeitada e humilhada dentro de casa. Minha tia, filha caçula da minha avó, fazia da minha vida um inferno. Até que, aos 13 anos, fui expulsa de casa. Uma das mulheres para quem trabalhei tinha uma irmã no Rio de Janeiro, para quem também já havia trabalhado. Ela me procurou e me trouxe novamente ao Rio para trabalhar.
Eu estava muito magra e em um trabalho forçado, escravo. Decidi que não queria mais viver aquela vida. Quando saí de lá, descobri que tinha um tio morando na favela Nova Holanda, no Complexo da Maré. Ir morar com ele, que era alcoólatra, foi outro erro, e quase fui abusada.
Foi quando, aos 14 anos, um amigo conseguiu me arranjar um emprego onde ele trabalhava. Com o salário, consegui alugar um quartinho para morar sozinha. Desde lá, luto até hoje. Quando eu morava com meus avós, analfabetos, eu e meus primos nunca frequentamos escolas, mas tinham pessoas que frequentavam as casas e mostravam o ABC, ensinavam a gente a escrever o nome. E eu sonhava em estudar, em ser professora. A minha chegada no Rio de Janeiro foi sofrida, dolorosa. Cidade grande, completamente diferente do mundo em que eu vivia e eu tinha que me encaixar naquele mundo, era assustador. Mas foi menos assustador do que as casas pelas quais eu passei.
O Rio de Janeiro foi o lugar onde eu mais encontrei pessoas para me abraçar. Encontrei família sem nenhum parentesco sanguíneo, encontrei amigos que me ajudaram e apoiaram. Com o tempo passei a desenvolver adolescência tardia, não tinha estrutura mental, então acabei me deslumbrando com os 18 anos, os 20, e a fazer coisas que eu nunca tinha feito, como sair e mandar na minha vida. Família pra mim é algo muito distante. O significado real de família eu desconheço. Agora, se você me perguntar o que significa amigo, isso eu sei, porque tenho e tive bastante.
Lembro de quando meu tio chegou bêbado no Natal, com segundas intenções, e fui para a casa de uma amiga, que morava num quartinho com dois filhos. Ali eu me sentia tão bem.
Quando eu não ia para a casa dessa amiga, ia para a de outra, a Carmem, que faleceu ano passado. Ela morava com o marido e dois filhos num barraquinho de madeira que chovia mais dentro do que fora, mas me sentia tão acolhida e apoiada por eles. E ela sempre me levava para o trabalho dela na Ilha do Governador. A patroa dela era uma senhora solteira, bancária, que me tratava muito bem. Uma vez eu estava no trabalho dessa minha amiga e vi a filha da patroa com seu quarto lotado, computador, várias bonecas e livros, estudando. Eu pensava o quanto gostaria de ter a vida dela.
Eu amo manga. Na casa dela tinha um pé de manga enorme. Uma vez a patroa estava sentada numa cadeira em frente a uma piscina e eu disse que fazia tempo que não via um pé de manga. Ela perguntou qual era minha fruta favorita e me deu dinheiro pra eu comprar. Toda vez que Carmen chegava do trabalho ela me falava pra ir comprar manga. São detalhes pequenos, mas muito significativos. Carmen foi muito importante pra mim. São amigos que me fizeram sentir dentro de uma família.
Também trabalhei em supermercado, mas o salário era muito pouco. Eram 12h trabalhadas e os aluguéis estavam muito caros, então resolvi sair da carteira assinada para trabalhar de diarista, que ganhava mais e dava pra ter uma vida mais estável, pagando aluguel e pagando as coisas necessárias que a gente precisa.
Cerca de dois anos atrás eu estava muito depressiva, achando a vida sem sentido e eu ouvi um relato de pessoas que eu conhecia que estavam na faculdade, que já estavam trabalhando e que participaram de ONGs de vestibulares comunitários. Naquela época, por causa do trabalho, não dava para estudar. Quando fiquei desempregada, trabalhando apenas como diarista, uma menina me indicou a Unifavela, pré-vestibular da Maré. Disse que estavam começando agora, mas que tinha grande estrutura e professores capacitados. Descobri que lá era uma porta de entrada para a universidade.
Estava super empolgada frequentando as aulas, queria tentar o curso de pedagogia da UERJ, mas logo em seguida veio a pandemia. Aí perdi as faxinas, os trabalhos não surgiram e tive que me virar sem internet para estudar. Como não estava mais conseguindo faxinas, tive que me mudar, porque não estava conseguindo me manter. E aí veio a ajuda da Unifavela. Recebo a bolsa Carolina Maria de Jesus, de R$ 200, que hoje é minha principal renda, minha única renda, e eles me deram um tablet para estudar.
Em junho, o proprietário da casa onde eu morava me pediu a casa e eu tive que dar e vender tudo o que tinha. Fui pra casa de uma amiga. Estou desempregada, pagando aluguel e não estou estudando, porque a internet do meu celular não é suficiente pra estudar. Sempre que eu posso leio livros, pego os materiais e estudo, mas não tenho mais cabeça. Não tenho mais sonhado. Acho que a universidade ainda é muito distante.
Aos 44 anos, meu maior sonho hoje é ter uma casa para morar, é meu sonho prioritário. Me considero uma guerreira, uma sobrevivente que fechou os olhos para as armadilhas da vida, que viveu dentro de uma comunidade extremamente perigosa na década de 90 e nunca se envolveu com nada de errado. Me considero uma pessoa corajosa. Nunca expus minha verdade, nunca tive coragem de contar, hoje falo com mais tranquilidade.
Fonte: Vogue