Fotógrafo e cineasta eslovacos expõe 60 imagens e curta-metragem que revelam ruínas intactas da guerra e histórias de sobreviventes do Holocausto. Mostra gratuita fica em cartaz até 29 de junho no Museu da República.
otografias e um curta-metragem que revelam, de forma poética, as ruínas da Segunda Guerra Mundial e as marcas do Holocausto em uma pequena cidade na Eslováquia chegam a Brasília para a exposição “The last folio – Preservando memórias”, do fotógrafo Yuri Dojc e da cineasta Katya Krausova, ambos nascidos na antiga Tchecoslováquia.
Em cartaz no Museu da República até dia 29 de junho, está é a segunda vez que a mostra vem ao Brasil, tendo passado por São Paulo no ano passado e por outros países, como EUA, Reino Unido, Rússia e Itália. A entrada é gratuita.
Prédios, monumentos, sinagogas e túmulos estão entre as 60 imagens selecionadas para recontar a história dos judeus eslovacos reduzida a escombros há décadas. Fotos de livros em decomposição – literalmente largados às traças – compõe uma importante parte do acervo.
A expressão que entitula a mostra brinca com o significado da expressão “first folio”, usada na Inglaterra como sinônimo de “primeira edição” e que, geralmente, denota o alto valor das obras – às vezes impagáveis.
Com os termos “last folio”, os artistas buscam revelar pessoas, objetos e espaços de convivência cujo preciosismo histórico e cultural são igualmente imensuráveis, com a diferença essencial de serem os últimos resquícios de um povo.
O projeto começou com a relutância de Dojc, que não queria firmar a parceria com a cineasta. “Eu pedi a ele dez dias de viagem. Ou nós iríamos nos odiar, ou daria muito certo”, disse Katya. O trabalho já completa 12 anos.
Para a cineasta, interessava a vida antes da guerra, quando os sobreviventes eram apenas cidadãos comuns. “Minha intenção era juntar os pedaços da vida, da cultura, da textura do que existia antes da tragédia, porque a tragédia em si todos conhecem. A história anterior que precisa ser resgatada. Queria saber em que tipo de casa moravam, o que faziam, com quem conviviam.”
“Todos pensam no Holocausto como o ‘marco zero’, como se nada tivesse acontecido antes dele. Mas houve séculos de um mundo magnífico.”
Yuri Dojc, embora viva no Canadá há décadas, mantém uma relação de proximidade com a antiga Tchecoslováquia. Nascido em 1946, um ano após o fim da guerra, o fotógrafo fugiu do país aos 22 anos por questões políticas. Naquela época, Katya ainda não havia cruzado o caminho do amigo, mas deixou o país no mesmo ano.
Em agosto de 1968, a Tchecoslováquia foi invadida por forças da antiga União Soviética para deter o movimento conhecido como Primavera de Praga, que pressionava pela liberalização política do país.
Em 1997, quando voltou à terra natal para o funeral do pai, Dojc começou a se interessar pelas ruínas da guerra, expostas nas ruas como feridas abertas. Desde então, ele voltou à Eslováquia repetidamente para fotografar sobreviventes do Holocausto e, a partir de 2005, Katya Krausova juntou-se às visitas.
Os sobreviventes
Embora os objetos tenham espaço privilegiado na mostra, são os sobreviventes da Segunda Guerra os protagonistas do projeto – que ainda não tem fim à vista. Antes de firmar parceria com a cineasta, Dojc tinha uma seleção de 150 retratos feitos na Eslováquia, entre os quais estava o de uma amiga do pai dele, Vajnorska.
Uma das mulheres levadas aos campos de concentração no primeiro trem para Auschwitz, em 1942, foi ela quem conduziu a busca dos artistas por mais testemunhas. O fotógrafo a conheceu no funeral do pai e, por meio dela, esteve em contato com outras pessoas com histórias marcadas pelas atrocidades do Holocausto.
“Ficou imediatamente óbvio, no momento em que começamos a conversar com essas pessoas, que elas estavam só esperando alguém para quem contar as próprias histórias.”
Uma delas, ex-professora de ópera, deu à luz o bebê dentro de um campo de concentração. Segundo Katya, hoje a filha dela é cientista na Califórnia, nos Estados Unidos. Outra história é de um senhor que faleceu em 2016. Ele contou à cineasta que os alemães quebraram seu braço para que pudessem tatuá-lo com o número de série que o identificaria nos campos de concentração.
“Ele parecia que tinha dez vidas. Gravei dez horas de conversa e tenho 60 segundos dele no filme. Sempre que parecia que a história ia acabar, ele contava algo inusitado”.
Biblioteca intacta
O projeto que começou com uma negativa do fotógrafo à proposta da de Katya transformou-se em dez dias de experimento e, quase “instantaneamente”, em um compromisso com a história da Eslováquia. Logo na primeira visita ao país de origem, em 2005, os dois conheceram um senhor “insistente” que se tornou peça chave do trabalho.
O homem – que, a princípio, não seria entrevistado para o filme – abordou os artistas e disse que precisava lhes mostrar algo. “Respondi que estávamos com tempo curto, pouco recurso financeiro e que percorreríamos 300 quilômetros no dia seguinte. Falei que na próxima oportunidade conversaríamos com ele, mesmo sabendo que não haveria uma próxima”
outro na frente do prédio.”
Sensibilizada, a cineasta o convidou para entrar, tomar um chá e conversar por vinte minutos. “Depois que ele começou a falar, não fizemos nada do que tínhamos programado durante 8 horas.” O homem tinha as chaves de uma escola comunitária que estava de portas fechadas desde 1942 e permaneceu intacta desde então.
Ao entrar, Katya e Dojc encontraram centenas de livros nas prateleiras, tarefas corrigidas, pergaminhos e até um pote de açúcar dentro de um armário. “Foi muita sorte a escola ter permanecido, porque ficava entre dois prédios que foram bombardeados”, disse a cineasta. Desde então, os artistas voltaram ao local oito vezes.
“Os livros estavam se desintegrando como em um conto de fadas. Íamos nos movendo e a poeira se espalhava.”
Fragmentos da vida
A riqueza poética das fotografias de Dojc está, ao mesmo tempo, na escolha minuciosa do enquadramento e no foco que dá aos detalhes – nítidos de tal forma que algumas imagens parecem tridimensionais. As lentes do eslovaco trazem à luz as camadas mais íntimas da vida nos anos de guerra e ressignificam o pó, transformando as ruínas em fragmentos de histórias reais.
“Para ele, os livros são as pessoas que não voltaram para ler. Cada livro é como se fosse um retrato.”
Objetos cotidianos, como relógios, torneiras e sapatos, são apresentados como um recorte ampliado de pequenos momentos vividos antes da guerra. Muitos deles foram encontrados em sótãos de casas e prédios alvos de bombardeios e do saqueamento alemão.
Uma das imagens que, segundo Katya, mais instiga os observadores é a de uma maleta de couro ao lado de uma garrafa de vinho de origem judia.
“Todo mundo que vê pergunta o que tinha dentro da maleta, mas é um completo mistério. Nós nunca a abrimos.”
Outra foto, registrada em 2013, mostra o resultado da ação das traças nos livros de algodão. Os insetos, que se alimentam do material, dispensaram a tinta impressa nele. As letras parecem ter sido recortadas, de modo que transformam-se em confete.
Os artistas
O fotógrafo Yuri Dojc vive no Canadá e tem o trabalho exposto em coleções da National Gallery, na Biblioteca do Congresso em Washington e no Museu Nacional da Eslováquia. A cineasta Katya Krausova mora em Londres, onde é cofundadora da Portobello Pictures, companhia de produção televisiva e cinematográfica. Desde 2009, “Last folio” tornou-se o pilar da construção artística de ambos os artistas.