O jogo narra a história da personagem Cícera, contextualizada na Bahia do século 19
Um dos principais games do primeiro trimestre de 2019 no Brasil é Árida. Transcorrida no sertão nordestino, a aventura se desloca por paisagens tomadas pela vegetação típica da caatinga — único bioma que só é encontrado no Brasil. Outro grande destaque é a presença de uma mulher negra no protagonismo, escolha importante em tempos de discussões acirradas sobre representatividade.
No centro da narrativa ocorrida no semiárido brasileiro está Cícera. Ela vive na Bahia do século 19. Em suas missões, a jovem ajuda sertanejos locais a lidar com a seca. Para completá-las, transita por paisagens duras, mas deslumbrantes. A trilha sonora e outros recursos valorizam a arte regional e ajudam a contextualizar carregando elementos típicos.
A princípio, o jogo retrataria o confronto travado em Canudos na década de 1890. A ideia chegou a caminhar. Os desenvolvedores contaram com contribuições de historiadores e visitaram a região para pesquisa de campo. Diante do potencial a ser explorado no sertão, os criadores decidiram construir uma história mais abrangente. A batalha, então, que estaria em destaque, passou a ser tangencial, assim como outros fatos históricos.
“Queríamos tratar de temas locais. No Brasil, sempre consumimos muita coisa estrangeira. Valorizar essa identidade é um fator fundamental para nosso projeto”, conta Filipe Pereira, idealizador de Árida e diretor geral da produtora responsável pelo game, Aoca Game Lab. Entre as preocupações do designer de jogos baiano, estava a de não reforçar a ideia do sertão como um “lugar bárbaro”.
A compacta equipe, com sete pessoas, começou ganhando repertório visual da vegetação a ser retratada. Queriam traduzir para o jogo sua beleza natural com boa dose de realismo. “Inicialmente, foi muito documental. Procuramos por produção bibliográfica. Fomos atrás de imagens, museus. Visitamos algumas vezes essas áreas”.
Entretanto, ele explica que não comprometem a estética do jogo na tentativa de fazer uma reprodução idêntica. “Tivemos essa preocupação em fazer algo minimamente acurado, mas sem se ater demais a isso. Não é sobre a geologia do sertão”, pondera. Ele acrescenta que elementos fantásticos foram inseridos na história.
Assim como o cenário de fundo, a escolha do protagonista não se deu por acaso. “Dentro da indústria de games, em que se vê o padrão de protagonistas, ter uma mulher negra como protagonista, é certamente uma ação consciente e política”, afirma, e completa, sem entregar o que está por vir, que o fato de ela ser mulher, além da justificativa “conceitual e política”, tem função narrativa.
Representatividade à parte, Filipe Pereira acredita que o jogo pode ser um bom entretenimento para qualquer um — mesmo para quem não é do Brasil. Para os brasileiros, claro, chama a atenção ver o sertão retratado num game. Ele aposta na “estranheza” para conquistar o mercado internacional. “O primeiro impacto para quem é de fora é de estranheza por não ter familiaridade, não ter uma primeira resposta objetiva. Apesar de ter bioma que lembra o deserto em alguns aspectos, pouco ali é familiar aos estrangeiros. Apostamos na estranheza como nosso cartão de visita.”
A estrutura narrativa é a mesma que outros jogos usam tradicionalmente. “Apenas estamos colocando nossa identidade ali”, diz o desenvolvedor. “Queríamos discutir estereótipos. Humanizar o processo, dar voz a anônimos do sertão”.
O jogo levou dois anos para ficar pronto, e, em 2017, foi selecionado por edital da Agência Nacional do Cinema (Ancine), que investirá R$ 250 mil. Filipe Pereira acredita que o jogo pode ajudar a quebrar a concentração do mercado de games do eixo Rio-São Paulo, além de incentivar novos games. “Outros projetos passam a se espelhar na gente. É uma coisa social, vai além do jogo”.
Árida será lançado dentro de algumas semanas, quando ficará disponível o primeiro episódio na plataforma de jogos Steam, para computadores. Estão previstos, ao todo, quatro episódios. Dois para este ano. A partir do segundo, a intenção é expandir o game para consoles. Fonte: Portal Correio Braziliense