Um pescador carrega um grande Pirarucu na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Piagacu-Purus, no Estado do Amazonas, Brasil. Foto: Ricardo Oliveira/ AFP
O governo federal abandonou o assentamento rural e o plano de manejo sustentável do peixe pirarucu na região onde o indigenista Bruno Pereira e o jornalista britânico Dom Phillips desapareceram. A área é próxima à terra indígena Vale do Javari (AM).
O desmonte do PAE (Projeto de Assentamento Agroextrativista) Lago de São Rafael, criado em 2011 para assentar 200 famílias ribeirinhas, e do plano de manejo do pirarucu contribuiu para o incremento da pesca e da caça ilegal na região —com conflitos constantes encabeçados por pescadores ilegais.
São esses conflitos que opõem pescadores e lideranças que defendem a terra indígena —principal hipótese das investigações policiais para explicar o desaparecimento de Pereira e Phillips. Eles não são vistos desde 5 de junho.
Há relatos de ataques de pescadores ilegais à base da Funai (Fundação Nacional do Índio) na entrada da terra indígena. Pereira licenciou-se da Funai e passou a atuar como colaborador da Univaja (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari).
O maior interesse da pesca ilegal é pelo pirarucu e pelo tracajá (uma espécie de cágado), principalmente dentro do território indígena.
A Folha constatou o abandono do assentamento e do plano de manejo sustentável em visita ao local e em conversas com ribeirinhos e pessoas que acompanham os projetos. Hoje, o que sobra das iniciativas são placas gastas e dispersas pelas margens do rio Itaquaí.
Uma placa do governo federal instalada próxima à comunidade São Rafael, o último lugar visitado pela dupla antes do desaparecimento, indica que ali deveria existir um assentamento agroextrativista, sob a responsabilidade do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária).
A placa está localizada ao lado de uma casa, que deveria ser um posto de fiscalização a cargo do instituto de colonização e do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis). À autarquia ambiental caberia fiscalizar o plano de manejo sustentável do pirarucu.
A realidade encontrada no local é de ausência dos dois órgãos.
Não há fiscais ou investimentos no assentamento. Segundo os próprios ribeirinhos, os moradores ficaram em 2021 sem a cota da quantidade de pirarucu que poderia ser pescada legalmente nos lagos das comunidades.
Tampouco há servidores do Incra e do Ibama em Atalaia do Norte (AM), segundo o prefeito da cidade, Denis Paiva (União Brasil). A unidade do Incra em Benjamin Constant, cidade vizinha, foi fechada em 2021, de acordo com o prefeito de Atalaia.
O resultado desse quadro, dizem moradores da cidade e das comunidades, é a intensificação dos conflitos protagonizados por pescadores e caçadores ilegais, além do incremento de invasões à terra indígena em busca do pirarucu.
Segundo os relatos feitos à Folha por pessoas que participaram do plano de manejo, o desmonte da estrutura começou no governo Michel Temer (MDB) e avançou ainda mais no mandato de Jair Bolsonaro (PL).
Fiscais comunitários foram treinados em 2013 e em 2014. O manejo sustentável do pirarucu funcionou até 2017.
Procurado, o Incra disse que nunca houve posto de fiscalização do instituto no Projeto Agroextrativista Lago de São Rafael —apesar de a placa no local indicar o contrário.
O instituto indicou ainda pagamentos realizados em 2017, no âmbito do Projeto de Assentamento Agroextrativista, no valor total de R$ 26 mil.
Sobre o manejo do pirarucu, o Incra afirmou que tomou conhecimento recentemente do plano. “Em agosto, será realizada reunião com os comunitários para a realização de levantamento ocupacional na área, seleção e inscrição de novas famílias e pagamento de créditos, entre outros assuntos.”
O Ibama não respondeu
O indigenista Bruno Pereira tinha intenção de buscar a reativação do plano de manejo do pirarucu quando tentou se encontrar, na comunidade São Rafael, com Manoel Vitor da Costa, conhecido como Churrasco, no domingo em que desapareceu ao lado de Phillips.
A intenção é relatada pelo próprio Churrasco, que é tio de Amarildo Oliveira, conhecido como Pelado e preso por suspeita de participação no desaparecimento da dupla.
Pelado vive na comunidade São Gabriel, ao lado da São Rafael. As famílias desses lugares sobrevivem da pesca e da agricultura de subsistência.
Nesta terça-feira (14) outro suspeito foi preso, Oseney da Costa de Oliveira, 41, conhecido como Dos Santos. De acordo com Alex Perez, que comanda a delegacia em Atalaia do Norte (AM), ele é irmão de Pelado.
O possível crime investigado é o de homicídio qualificado, segundo o delegado. Duas testemunhas, prosseguiu Perez, “colocaram” Pelado e Oseney “no local do suposto crime”.
O assentamento agroextrativista criado pelo Incra tem 71,3 mil hectares. Deveria se destinar a 200 famílias, mas tem 53 assentadas, segundo o relatório mais atualizado do órgão, de 19 de maio. A quantidade de assentados se aproxima do número de famílias que vive em quatro comunidades ao longo do Itaquaí, entre Atalaia do Norte e a base da Funai.
Conforme o relatório de projetos de assentamento do Incra, o Lago de São Rafael está na fase 3, que equivale à de “assentamento criado”. A placa que indica um posto de fiscalização, que deveria estar a cargo de Incra e Ibama, fica a menos de dois quilômetros, pelo rio, da base de fiscalização da Funai —a porta de entrada da terra indígena Vale do Javari.
“Várias comunidades ribeirinhas, como Açaizal e Monte Alegre, desapareceram em razão da ausência do poder público”, afirma o prefeito de Atalaia do Norte, Denis Paiva. “Existe a ideia de reativar o plano de manejo e estender a outras comunidades.”
O prefeito diz ter tratado do assunto com Pereira, que manifestou a intenção de auxiliar na retomada do manejo sustentável do pirarucu, de forma a diminuir as invasões para pesca ilegal na terra indígena. “Estão tirando o pirarucu de qualquer jeito”, afirma Paiva.
Quando precisa tratar de assuntos relacionados ao assentamento ou ao manejo, o prefeito viaja a Manaus. Para isso, ele precisa pegar uma estrada esburacada até Benjamin Constant, um barco até a cidade de Tabatinga e, finalmente, um voo até a capital do estado do Amazonas.
Segundo Paiva, o deslocamento passou a ser necessário diante do fechamento do posto do Incra em Benjamin Constant e o do Ibama em Tabatinga.
“Não vejo ninguém do Incra e do Ibama aqui. Não tem fiscal, não tem servidor, não tem nada”, afirma o prefeito.
Advogado da Univaja, Eliesio Marubo diz que Ibama e Incra contam com um único servidor cada para toda a região do Javari. “É a ausência total do Estado.”
Segundo Eliesio, o diálogo com as comunidades ribeirinhas sempre existiu. “A gente não parou de dialogar. Tanto que Bruno [Pereira] ia conversar com a comunidade [São Rafael], na pessoa do líder Churrasco.”
Por Jornal de Brasília