Tomar decisões adequadas em uma situação de emergência é, literalmente, um caso de vida ou morte. Em alguns casos, mesmo o mais experiente dos médicos é capaz de fazer a escolha errada, pois medidas que podem até parecer um detalhe acabam definindo o prognóstico do paciente. Por exemplo: na sepse grave — condição imprevisível que pode progredir muito rápido, levando à falência de órgãos —, a administração excessiva de líquidos por via venosa nas primeiras horas aumenta o risco de morte do paciente.
Pensando nisso, pesquisadores do Instituto Tecnológico de Massachusetts (MIT), em Boston (EUA), desenvolveram um modelo de aprendizado de máquina que pode ser usado para identificar tratamentos que representam um risco maior, comparado a outras opções. O algoritmo também é capaz de alertar os médicos quando um paciente séptico está se aproximando de uma situação crítica — o ponto em que, independentemente do que for feito, ele, provavelmente, morrerá. Com o alerta, a expectativa é de que os especialistas consigam intervir antes que seja tarde demais.
Quando aplicado a um conjunto de dados de pacientes com sepse internados em uma unidade de terapia intensiva (UTI), o modelo apontou que cerca de 12% dos tratamentos fornecidos aos que morreram foram prejudiciais. O estudo do MIT, publicado nos anais da conferência Sistemas de Processamento de Informação Neural, também revela que cerca de 3% das pessoas que não sobreviveram entraram na fase crítica até 48 horas antes de morrer. “Vemos que nosso modelo está quase oito horas à frente do reconhecimento médico da deterioração de um paciente. Isso é poderoso, porque, nessas situações, cada minuto conta, e estar ciente de como o paciente está evoluindo e do risco de administrar determinado tratamento a qualquer momento é muito importante”, explica Taylor Killian, estudante de pós-graduação do Laboratório de Ciência da Computação e Inteligência Artificial (CSAIL) do MIT.
Killian conta que, no aprendizado por reforço, o algoritmo é treinado por tentativa e erro e aprende a realizar ações que aumentem suas chances de obter as recompensas definidas pelo programador. Como não seria ético testar a eficácia do sistema em pacientes, os pesquisadores fizeram o treinamento usando dados reais de uma UTI. O modelo foi estimulado a identificar os tratamentos a serem evitados, com o objetivo de impedir que se chegasse ao ponto crítico, que Killian define como “beco sem saída médico”. “Aprender o que evitar é uma abordagem estatisticamente mais eficiente, que requer menos dados”, explica.
Simulações
Para desenvolver a abordagem, chamada Dead-end Discovery (DeD), os pesquisadores criaram duas cópias de uma rede neural. A primeira se concentra apenas em resultados negativos — quando um paciente morre — e a segunda, nos positivos — caso de sobrevivência. Isso permitiu que os cientistas detectassem um tratamento arriscado em uma das redes e, depois, confirmassem a informação usando a outra.
Os pesquisadores, então, testaram o modelo usando um conjunto de dados referentes a cerca de 19,3 mil internações, contendo observações de 72 horas desde que os pacientes manifestam os primeiros sintomas de sepse. Uma das descobertas foi a de que entre 20% e 40% das pessoas que não resistiram apresentaram sinais de estarem se encaminhando para o “beco sem saída” a tempo de uma intervenção. Muitos, até 48 horas antes da morte. “Descobrimos que mais de 11% dos tratamentos poderiam ter sido evitados porque havia alternativas melhores disponíveis naqueles momentos. Esse é um número bastante substancial.”
A professora Marzyeh Ghassemi, autora sênior do estudo, esclarece que o modelo visa auxiliar os médicos, não substituí-los. “Os médicos humanos são quem tomará decisões sobre os cuidados. Receber conselhos sobre qual tratamento evitar não mudará isso”, diz. A cientista planeja continuar aprimorando o sistema e validá-lo usando dados de outros hospitais.
“A aplicação de técnicas de inteligência artificial ao diagnóstico continua atraindo atenção considerável, dada a potencial vantagem, em termos de sensibilidade, repetibilidade e rendimento, quando aplicada a grandes conjuntos de dados ricos em informações”, diz Peter Banister, do Instituto de Pesquisa de Saúde Aplicada da Universidade de Birmingham, na Inglaterra. O cientista, que não participou do estudo, lamenta, porém, que ainda há desconfiança entre médicos. “Tem havido uma adoção limitada até o momento e, além disso, existe ceticismo sobre se essas abordagens podem gerar um benefício líquido para o paciente quando implementadas em escala.”
Infecção grave
Segundo a Organização Mundial da Saúde, a sepse mata 11 milhões de pessoas a cada ano, muitas delas crianças e idosos, e incapacita outros milhões. No Brasil, estima-se que ocorram 240 mil mortes ao ano em decorrência de um conjunto de manifestações graves em todo o organismo produzidas por uma infecção.
Doses de anestesia automatizadas
Também no MIT, um estudo em parceria com o Hospital Geral de Massachusetts (MGH) sugere que pode estar perto de os sistemas avançados de inteligência artificial (IA) ajudarem em uma das etapas mais importantes de uma cirurgia: a anestesia. A equipe, formada por neurocientistas, engenheiros e médicos, demonstrou um algoritmo de aprendizado de máquina para automatizar continuamente a dosagem do medicamento anestésico propofol.
Para isso, os cientistas usaram um aplicativo de aprendizado de reforço profundo, que ensinou às redes neurais do software como suas escolhas de dosagem conseguem manter o paciente inconsciente e também a avaliar a eficácia de suas ações. Segundo o artigo, publicado na revista Artificial Intelligence in Medicine, em simulações de fisiologia, o algoritmo superou o software mais tradicional. O sistema também comparou o próprio desempenho ao de anestesiologistas na manutenção da inconsciência durante nove cirurgias reais.
Os autores explicam que os avanços do algoritmo aumentam a viabilidade de sistemas artificiais manterem o paciente inconsciente na dose exata, sem risco de se exagerar na quantidade de drogas. Assim, os anestesiologistas podem ser liberados para outras atividades necessárias na sala de cirurgia, como garantir que os pacientes permaneçam imóveis, não sintam dor, fiquem fisiologicamente estáveis e recebam oxigênio adequadamente.
“Pode-se pensar em nosso objetivo como sendo análogo ao piloto automático de um avião, em que o capitão está sempre na cabine prestando atenção”, compara Gabe Schamberg, ex-pós-doutorado do MIT e o autor correspondente do estudo. “Os anestesiologistas precisam monitorar simultaneamente vários aspectos do estado fisiológico de um paciente e, portanto, faz sentido automatizar parte do atendimento”, defende. “Algoritmos como esse permitem que os anestesiologistas mantenham uma vigilância mais cuidadosa e quase contínua sobre o paciente durante a anestesia geral”, disse, em nota, Emery Brown, autor sênior do estudo e anestesiologista do MGH.
Cérebro
Os pesquisadores projetaram uma abordagem de aprendizado de máquina não só para ensinar a dosar o propofol de forma a manter o paciente inconsciente, mas também como otimizar a quantidade da droga administrada. Para isso, usaram um software de duas redes neurais relacionadas: um “ator”, com a responsabilidade de decidir quanto medicamento administrar a cada momento, e um “crítico”, cujo trabalho era ajudar o primeiro a se comportar de uma maneira a ganhar as melhores “recompensas” especificadas pelo programador.
Por exemplo, os pesquisadores treinaram o algoritmo usando três recompensas diferentes: uma que penalizava apenas a overdose, outra que questionava o fornecimento de qualquer dose e, por fim, a que não impunha penalidades. Em todos os casos, eles treinaram o algoritmo com simulações nas quais a rapidez na administração das doses de propofol levam o remédio a regiões relevantes do cérebro. Também fizeram o ensinamento farmacodinâmico, ou seja, como o remédio altera a consciência do paciente quando atinge seu destino.
O sistema de recompensa mais eficaz acabou sendo a “penalização de dose”, em que o crítico questionava cada quantidade de remédio que o ator administrava, constantemente o repreendendo, para que conseguisse chegar à dosagem exata para manter o paciente inconsciente. O algoritmo, depois, foi testado com dados de pacientes reais. Na maioria deles, as escolhas que fez coincidiram com as dos anestesiologistas. Os pesquisadores, porém, reconhecem que são necessários ajustes antes de o software passar a assistir os especialistas. (PO)
Fonte: Correio Braziliense