Cidadão não sabe seu lugar na fila para consulta. Órgãos de controle apontam falta de transparência
Quem procura o sistema de saúde do Distrito Federal para marcar consulta em qualquer especialidade médica não sabe o tempo que pode aguardar para ser atendido e qual o seu lugar na fila. No portal da Secretaria de Saúde, o paciente encontra apenas um serviço geral, com a lista de hospitais, divididos por região administrativa, com as especialidades, telefones e horários de funcionamento.
A falta de transparência não se limita ao cidadão. Os órgãos responsáveis por acompanhar, vistoriar e controlar a pasta também encontram dificuldades para obter informações. Para o Ministério Público do DF e Territórios, o governo local não cumpre a Lei da Ficha Limpa na Saúde (Lei Distrital 5.221/ 2013), que estabelece a obrigatoriedade de disponibilizar na internet dados como a quantidade de médicos por escala e especialidade, em cada unidade de saúde; a quantidade de leitos de UTI oferecidos e disponíveis; as especialidades e exames ofertados em cada unidade; o estoque de remédios e a classificação na fila para cirurgia, resguardando a privacidade do paciente.
“Esses dados são essenciais para a fiscalização e para saber se a secretaria respeita os princípios de equidade, impessoalidade e moralidade. Dessa forma, violam o direito de acesso à informação. Se a pasta está informatizada, não há justificativa para isso. Teve um caso em que a quantidade de médicos por escala estava informada em dois sites, com números diferentes. No caso das consultas, há especialidades em que o atendimento tem um prazo curto e não pode esperar”, diz a promotora de Justiça Marisa Isar.
Espera
No setor de marcação de consultas do Hospital de Base, uma fila de pacientes inconformados compunha o cenário, no fim da tarde de ontem. O motivo da indignação era a dificuldade de se consultar com um especialista e fazer exames. A doméstica Andreia Custódio da Silva, 31, tentava marcar com um ortopedista. A consulta é para uma amiga que, segundo Andreia, está há três anos tentando atendimento.
De acordo com a doméstica, a amiga tem dois cistos na mão e foi orientada por um clínico geral a procurar um especialista. “Desde 2013, estamos buscando uma consulta, mas a única explicação nos hospitais é que não tem vaga e que precisamos esperar. Mas a doença não espera. Os cistos cresceram e atrapalham a rotina dela, além de ser doloroso”, contou.
Dois anos para conseguir um endocrinologista
A dona de casa Ivanir Justino da Silva, 40, precisa fazer uma cirurgia no pescoço para a retirada de um caroço. Segundo ela, a demora no atendimento é frequente e foi assim desde o diagnóstico. “Consultei com um clínico geral e ele me disse para procurar um endocrinologista. Eu esperei dois anos até conseguir agendar no Hospital do Paranoá, em novembro de 2015. Agora, estou aqui de novo esperando pela cirurgia há mais de dois meses”, relatou.
Para a dona de casa, diante da demora, o sentimento é de frustração: “O caroço do meu pescoço, que era pequeno, não para de crescer. O meu problema não tem paciência para esperar uma vaga aparecer”.
Já para a vendedora Maria de Fátima Carneiro Araújo, 45, o sentimento é de revolta. Há três anos no aguardo de um exame para o filho de 14 anos, ela lamenta a realidade da saúde pública. “Meu filho precisa de um neurologista para fazer um raio X da cabeça. Já procurei vários hospitais e nada”, contou.
Saiba como proceder
O primeiro procedimento que o paciente deve tomar quando não consegue atendimento na rede pública é procurar a Defensoria Pública do DF. O órgão faz a intermediação entre o cidadão e a área solicitada. Não há prazo mínimo para buscar ajuda. Se houver recusa no atendimento ou espera demasiada, o paciente pode solicitar o atendimento imediatamente. “No ano passado, trabalhamos em situações em que a consulta não era realizada devido à greve, ausência médica, por isso, a pessoa teria não sido atendida”, explicou o defensor público Celestino Shupel.
Em janeiro, o setor atuou em 94 casos referentes a consultas médicas no DF. “Há casos que demandam urgência. Não tem jeito de esperar. Verificamos com a secretaria a possibilidade de oficializar agendamento ou prazo, esgotamos todas as possibilidade. O último recurso é a ação judicial”, avalia. Desses casos atendidos no mês passado, 50 resultaram em ação judicial, a maioria referente à oncologia.
O professor da Universidade de Brasília, especialista em Administração Pública, José Matias-Pereira, acredita que a falta de transparência de dados aponta negligência do poder público com a área da saúde e isso afeta o cidadão: “Isso mostra que ocorre descaso, um sintoma evidente de que a gestão pública tem enormes deficiências”.
Há duas semanas, a reportagem questiona a assessoria de imprensa da Secretaria de Saúde sobre o tempo de espera para marcação de consultas, quantas pessoas estão na fila e o número médio de atendimento mensal. Até ontem, a pasta se limitou a dizer “que está atualizando os dados sobre marcação de consultas e, tão logo o trabalho esteja concluído, poderemos disponibilizá-los”.
Necessidades não são atendidas
A última auditoria realizada pelo Tribunal de Contas do DF (TCDF), entre julho e outubro de 2014, avaliou a qualidade do atendimento nas unidades básicas de saúde do DF. De acordo com a investigação, a espera por consulta chegava a 2,5 anos, dependendo da especialidade. Havia 20.233 solicitações para atendimento em cardiologia e 8.702 para neurologia-pediatria. A lista era extensa e incluía outras especialidades. Além disso, mais de 1,5 mil profissionais de saúde atuavam na área administrativa, entre eles cirurgiões, anestesistas e oncologistas. No relatório final, os auditores concluíram que as necessidades de saúde da população não eram atendidas.
Outra instituição que sofre com a falta de transparência do órgão é o Sindicato de Médicos do DF. “ Solicitamos dados da pasta para fazer estudos, levantamentos, mas não conseguimos nada. Estamos tendo que recorrer ao Ministério Público para conseguir essas informações, que são de interesse público”, afirma o presidente do Sindmédicos-DF, Gutemberg Fialho. “Não temos nenhuma transparência. Queremos um levantamento do número de óbitos na saúde em 2015 para fazer parte de um levantamento e nada. Deveria ser rotina ter esses dados no site”, critica.
Contra a terceirização
A Promotoria de Justiça de Defesa da Saúde (Prosus) e o Ministério Público de Contas (MPC-DF) receberam representantes dos usuários no Conselho de Saúde do DF (CS-DF), de servidores, conselhos profissionais e sindicatos, além da deputada federal Érika Kokay, para encaminhar representação contrária à contratação de organizações sociais para gerir as unidades públicas de saúde.
No encontro, a promotora Marisa Isar enfatizou a atuação da Prosus para que os hospitais sejam dotados de pessoal em quantidade suficiente para atender a demanda: “Foi proposta ação civil pública para que os contratos temporários sejam substituídos por servidores concursados, pois a contratação temporária é uma forma de precarização ”.
Ela lembrou que há candidatos aprovados no concurso de 2014 aguardando nomeação e que os limites com gasto de pessoal da Lei de Responsabilidade Fiscal também se aplicam aos contratos de gestão que venham a ser celebrados com organizações sociais (OS).
A procuradora-geral do MPC-DF, Cláudia Fernanda Oliveira, explicou que tanto a contratação de OS para gerir o Hospital de Santa Maria, em 2009, quanto a recente terceirização das lavanderias foram objeto de ações.
Representantes do CS-DF entregaram ao Ministério Público relatório que detalha irregularidades na contratação, em 2010, do Instituto do Câncer e Pediatria Especializada (Icipe) para a gestão do Hospital da Criança de Brasília (HCB). O documento aponta erros e conflitos de interesse, o que reforça a ação de improbidade proposta pela Prosus, em 2015, que pede a impugnação da qualificação da entidade como OS e de sua contratação.
Saiba mais
Relatório do Tribunal de Contas do DF, de 2013, apontou falhas na gestão pública de saúde. Inspeção feita por auditores identificou que, de todas as despesas do GDF sem cobertura contratual, 98,6% ocorreram na saúde. A prática inviabiliza a fiscalização e fere a legislação. O documento mostrou a falta de 2.603 leitos comuns nos hospitais em relação ao mínimo recomendado pelo ministério. A pasta também administrou de maneira incorreta 432 UTIs.
A investigação revelou que, até setembro de 2013, os pacientes de UTI ficavam, em média, 8,9 dias esperando por um leito comum. Entre abril e dezembro de 2013, o órgão contabilizou o desperdício de 7.273 diárias de UTI.