Essa é a história da menina que sempre sonhou com o príncipe encantado. Que virou adulta e encontrou alguém para depositar amor e esperança. Ele não era um monstro, agressivo e violento. O príncipe estava ali, em algum lugar, durante alguns anos. Até que, pouco a pouco, foi sumindo. De forma lenta, gradual. Nada aconteceu de repente. Identificar que o relacionamento tinha se tornado abusivo foi difícil. Primeiro, vieram as agressões verbais. Depois, as físicas. Mas as coisas melhorariam. Promessas e mais promessas. E, pouco a pouco, o príncipe foi embora de vez. Restou apenas a violência. E a menina, agora mulher, tinha de decidir se lutaria pela vida ou se sucumbiria pelas mãos do agressor.
A então menina por trás desse relato é Dayana de Freitas, 37 anos, servidora pública. Mas é também a história de muitas outras mulheres. De tantas outras que passaram e ainda passam pela situação. Na terceira reportagem da série Elas no Alvo, o Correio conta o drama de mulheres adultas que sofreram abusos físicos, psicológicos e violência doméstica por pessoas nas quais depositaram confiança e amor: os próprios companheiros.
De acordo com a Secretaria de Segurança Pública, em 91,7% das ocorrências de Lei Maria da Penha no primeiro trimestre do ano, as agressões no Distrito Federal ocorreram dentro de casa. De janeiro a junho, a pasta registrou 7,8 mil ocorrências de violência doméstica. E, apesar de a violência estar presente em todas as idades da mulher, como mostra o jornal nesta série, a maioria das vítimas (65%) está na faixa etária de 18 a 40 anos.
Para a especialista do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB) Lourdes Bandeira, não há lugar onde a mulher possa estar livre da violência tanto em espaços públicos quanto privados. “As pesquisas têm mostrado que a maioria das mulheres que vivem no contexto da violência são assassinadas por pessoas com as quais elas tinham vínculos afetivos”, afirmou.
As agressões físicas, no entanto, não ocorrem de repente, como explica a professora da Universidade Católica de Brasília (UCB) Heloísa Maria de Vivo Marques, do curso de psicologia jurídica e coordenadora do projeto SIM — um serviço de atendimento integral a mulheres em situação de violência doméstica. É, aos poucos, que o relacionamento se mostra abusivo. “Começa de forma sutil. Ele (abusador) vai controlando a roupa que ela usa, controlando os amigos que tem, o corte de cabelo, começa sem a violência física. Ele vai se aprimorando”, alertou.
A história de Dayana confirma esse roteiro. “Como eu não tinha percepção do que era violência psicológica, comecei a sofrer com o ciúme excessivo. Mas eu achava que aquilo era uma prova de amor”, explicou. Os dois começaram a namorar quando ela tinha 14 anos — ele era um ano mais velho — e se casaram aos 18, quando Dayana engravidou do primeiro filho. O ciúme inocente virou controle: ela não podia trabalhar, não podia ter amigos e até a roupa que ela vestia era controlada. “Em 2007, eu sofri agressão física. Eu tomei coragem, dei parte e, depois, tirei, porque ele sempre prometeu que mudaria, que aquilo era só porque ele estava nervoso”, disse.
Além dos socos e arranhões, Dayana era vítima de violência psicológica — uma das características de relacionamentos abusivos. “Ela (violência psicológica) foi a mais devastadora, porque eu comecei a ficar em cárcere privado dentro de mim mesma. Eu comecei a não sentir vontade de viver”, relembrou. “Ele me desqualificava, me incapacitava como mulher, dizia que eu nunca seria ninguém, que o meu papel era viver dentro de casa”, relatou.
Respeito
A situação se arrastou até 2012, quando Dayana quis dar o primeiro ponto final naquela história: “Eu decidi que não queria mais aquilo. Fiz a denúncia, e ele saiu de casa.” No entanto, mesmo separados, o ex-companheiro fazia ameaças, tentava invadir a casa da ex-mulher e ameaçava tirar a guarda dos filhos. “Ele dizia que eu não podia ter outro homem, que, se eu tivesse, ele me mataria”, revelou. Com gravações e outras provas, a servidora procurou a polícia e ganhou, na Justiça, a medida protetiva. Ainda assim, o ex-marido comprou uma casa na mesma rua dela. “Isso me desestabilizou totalmente. Por que ele sempre queria estar perto de onde eu estava?”, questionou. A resposta veio pelo Ministério Público, e o homem ficou preso 30 dias por descumprimento da medida.
“Eu pensei em me matar”, confessou Dayana. Após acompanhamento psicológico, atendimento em hospitais e ajuda do Pró-Vítima — programa do governo de atendimento psicossocial —, a servidora reescreveu a própria história e, hoje, oferece suporte a mulheres que passam pela mesma situação por meio de um projeto próprio de acolhimento nas redes sociais, o Juntas Somos Mais Fortes. “Agora, ele não me procura mais. Não me perturba mais. Hoje, ele me respeita. Eu não tenho mais nenhum contato com ele, mas ele ainda tem contato com os meus dois filhos. Eu diria que ele aprendeu a lição”, ressaltou.
Suporte legal
A Lei nº 11.340/06, a Lei Maria da Penha, define violência doméstica ou familiar como toda ação ou omissão, baseada no gênero, que cause morte, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial, no âmbito da unidade doméstica, da família e em qualquer relação íntima de afeto, em que o agressor conviva ou tenha convivido com a agredida.