São Paulo — Assim que a contagem das urnas na Argentina cravou, na noite do domingo (27/10), a vitória dos peronistas Alberto Fernández e Cristina Kirchner sobre o atual presidente, Mauricio Macri, empresários e entidades de diversos setores da economia brasileira começaram a refazer suas contas.
“No setor automobilístico, o que já era ruim pode ficar ainda pior”, afirma o executivo de uma montadora francesa, com fábricas no Brasil e na Argentina, que pediu para não ter o nome revelado. “O que será do Mercosul, ainda não sabemos, mas, se a dupla eleita na Argentina for coerente com o discurso de campanha, e o presidente Jair Bolsonaro reagir à altura das críticas, a certeza é de que o cenário pode piorar.”
A perspectiva de deterioração das relações comerciais com o país vizinho é endossada pela associação dos fabricantes de automóveis, a Anfavea. Embora ainda não tenha um cálculo fechado, a entidade está revendo para baixo os números de exportação. Os embarques para a Argentina, de janeiro a setembro deste ano, foram de 175,5 mil unidades, uma queda de mais de 50% contra as 363 mil unidades do mesmo intervalo de 2018. Com isso, a participação da Argentina nas exportações brasileiras de automóveis despencou de 73% para 52%. O presidente da entidade, Luiz Carlos Moraes, preferiu não fazer nenhum comentário sobre o resultado das urnas, mas informou que um posicionamento deve ser apresentado durante a divulgação mensal de resultados, na próxima semana.
O clima de tensão gerado pela eleição na Argentina se justifica. A moeda local, o peso, nunca valeu tão pouco, as taxas de juros estão acima de 60% e a inflação anual passa de 54%. Conhecida por fazer um governo populista e protecionista, Cristina Kirchner promoveu, durante 2007 e 2015, políticas de restrição à importação de produtos brasileiros e estabeleceu tarifas adicionais para diversos setores. O risco, agora, é a volta das sobretaxas, não apenas no setor de veículos e peças, mas também nas atividades essenciais para os dois países, como o agronegócio. “Embora por um período intermediário os impostos tenham sido elevados na gestão de Maurício Macri, em virtude de problemas orçamentários, depois, eles foram reduzidos consideravelmente”, diz Michaela Kühl, analista de commodities agrícolas do banco alemão Commerzbank. A Argentina é o maior exportador de farelo e óleo de soja, além de um dos maiores exportadores de milho e trigo. “Muitos agricultores estão temerosos com o fato de o novo governo poder intervir em uma extensão muito maior na produção e declararam que, se isso acontecer, irão reter investimentos”, completa a analista.
Farpas
A tensão imediata do setor produtivo brasileiro se explica pela recente troca de farpas entre Fernández e Bolsonaro. No dia da vitória, o presidente eleito da Argentina fez o sinal de “Lula Livre” com os dedos. Já o líder brasileiro disse que a escolha do eleitor argentino foi um erro e que o gesto com as mãos foi uma afronta à democracia brasileira. “Se o Brasil deixar o Mercosul, o acordo comercial com a União Europeia pode fracassar”, diz Lucas Dezordi, economista-chefe da Trivella M3 Investimentos. “Fora do bloco, o Brasil perderia a oportunidade de capitalizar com a parceria.” Outros setores, historicamente dependentes da corrente comercial com a Argentina, também receberam com apreensão o resultado das eleições no país vizinho. Para o presidente da Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (Abit), Fernando Pimentel, “o momento é de observar, acompanhar e trabalhar para que a relação entre Brasil e Argentina cresça e se desenvolva”. A Argentina é o terceiro maior parceiro comercial do Brasil, ficando atrás apenas de China e Estados Unidos. O país é o principal destino das vendas internas da indústria têxtil e de confecção.
No setor de alumínio, a ordem é esperar para entender melhor os planos do novo presidente argentino. “Ainda é cedo para qualquer análise sobre o impacto da eleição de Alberto Fernández para os negócios do setor. A torcida é para que o novo governo promova o crescimento sustentável do país. Será bom para todos: para a Argentina, para o Brasil e para o nosso alumínio”, diz Milton Rego, presidente executivo da Associação Brasileira do Alumínio (Abal). A Argentina é um dos principais parceiros da balança comercial do alumínio. De janeiro a setembro, o país vizinho respondeu por 12% das exportações brasileiras de alumínio. Para a Associação Brasileira das Indústrias de Calçados (Abicalçados), o viés mais protecionista do que o do liberal Maurício Macri traz novamente o fantasma de barreiras aos calçados brasileiros exportados para a Argentina. “É natural que exista o receio. Durante boa parte do governo de Cristina Kirchner, hoje vice-presidente na chapa eleita, tivemos problemas com a liberação de licenças, com prejuízos que chegaram a mais de US$ 200 milhões”, afirma o presidente executivo da entidade, Haroldo Ferreira.
Apesar da crise na Argentina, o país segue sendo o segundo principal destino internacional do calçado brasileiro, atrás apenas dos Estados Unidos. Entre janeiro e setembro deste ano, foram exportados para lá 7 milhões de pares, que geraram US$ 77,14 milhões, quedas tanto em volume (de 25,5%) quanto em receita (de 33%) na relação com igual período de 2018.
Ideologia
O pêndulo ideológico esquerda-direita-esquerda é o que mais tem gerado tensão na relação entre as duas maiores economias da América do Sul, segundo o presidente da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB), José Augusto de Castro. “Questões ideológicas não deveriam interferir nos negócios entre os dois países. Se o Brasil criar dificuldades, pode perder um comprador ainda importante. Não podemos abrir mão da Argentina porque a China pode ficar muito feliz com qualquer prejuízo na relação”, afirmou ele. Segundo Castro, a Argentina deve ainda adotar barreiras à importação brasileira e o setor automobilístico deve ser o mais afetado. A relação entre os dois países, de acordo com ele, é importante para favorecer negócios entre o Mercosul e a União Europeia, por exemplo. “O melhor é deixar a poeira assentar e não fazermos comentários contra a Argentina”, afirmou Augusto de Castro.