Hikikomori é um transtorno mental marcado por isolamento social grave, físico e interpessoal, que dura ao menos seis meses. Em 1998, o psicólogo Tamaki Saito comparou o comportamento ao de uma “adolescência prolongada” e cunhou o termo hikikomori no livro Isolamento social: uma adolescência sem fim.
O que se pensava ser uma síndrome cultural japonesa, que seria favorecida pelos valores individualistas e costumes locais, tornou-se um problema de saúde pública na Ásia, nos anos 1990. Atualmente, sabe-se de casos no mundo todo. O Brain Congress 2022, evento de saúde mental e neurologia que ocorreu no início de junho, apresentou avanços no que se conhece sobre o tema, ainda pouco falado.
Para quem convive com o problema, o quarto vira o próprio mundo. Evidências preliminares mostram alguns padrões associados — ainda não se pode falar de uma causa exata. Destaque para o gaming e tempo de internet excessivo, vício em pornografia (na tentativa de suprir a ausência de conexões reais), amizades e laços sociais quase exclusivamente virtuais, procrastinação e falta de ocupação, seja trabalho, seja estudo. A solidão é uma das queixas mais comuns entre os pacientes.
Segundo o psiquiatra Thiago Henrique Roza, estudioso da área, nas formas mais severas, a pessoa é sedentária a ponto de não sair nem para ir à cozinha de casa. Não faz atividades básicas do lar. Não sabe lavar a louça, não consegue ir ao mercado sozinho. O especialista explica que o ambiente familiar é uma das maiores vulnerabilidades. “As famílias se acomodam com a situação do ‘menino de 40 anos’ que mora no quarto”, diz.
Nesse contexto, o paciente — é mais comum que seja homem —, não se sustenta e depende dos cuidados e finanças dos pais. “Por causa dessa dependência, há uma preocupação com o que será desse isolado quando ele envelhecer ou se os pais se mudarem”, avalia.
É possível que até metade dos casos apresente também outras comorbidades psiquiátricas. O psiquiatra Vitor Breda cita, entre elas, esquizofrenia, ansiedade, transtorno de personalidade e do neurodesenvolvimento. “Esses transtornos que acompanham o hikikomori tendem a dificultar a resposta ao tratamento. Por vezes, a visita domiciliar é o primeiro passo, já que o paciente precisa de ajuda até para sair do quarto”, explica.
O que é hikikomori
Isolamento social grave e prolongado, que dura seis meses ou mais. O paciente isola-se, primeiro, fisicamente. Depois, o comportamento se estende para as relações interpessoais.
Casos
Segundo o censo japonês, o país tem 540 mil pessoas entre 15 e 39 anos com o transtorno, o que corresponde a 1,79% dos japoneses nessa faixa de idade, mas é provável que o número real seja o dobro disso.
Fatores associados
– Transtorno dos jogos digitais, game disorder
– Vício em pornografia
– Uso excessivo de telas, incluindo smartphone, televisão e serviços de streaming
– Vida exclusivamente on-line
Tratamento
– Equipe multidisciplinar para soluções multimodais (terapia ocupacional, exercício físico, apoio de profissionais de enfermagem…)
– Entrevista motivacional voltada para a dependência em games, pornografia e vida on-line
– Indicação de psicofármacos
– Intervenções familiares
– Atividade física
– Prevenção de recaídas
– Internação hospitalar, em casos graves ou de riscos psiquiátricos
É comum o paciente ter
Outras comorbidades psiquiátricas:
– Ansiedade social, acompanhada de medo e fobias
– Estresse pós-traumático, que pode vir com dores psicológicas crônicas
– Flutuação de sintomas depressivos, marcados pela anedonia (ausência de prazer), perda de motivação, pensamentos suicidas
– Problemas sérios na comunicação e interação social
Fatores psicológicos, socioculturais e biológicos associados:
– Solidão
– Vergonha
– Problemas de confiança
– Baixa autoestima
– Percepção alterada dos valores parentais (responsabilidade, compaixão, tempo de qualidade em família, empatia, etc.)
– Estresse oxidativo, quando os níveis de antioxidantes não são suficientes para compensar os radicais livres
Registros
A fotógrafa Maika Elan capturou o mundo “escondido” dos hikikomori enquanto acompanhava a Novo Começo, uma organização sem fins lucrativos que trabalha para tirar os hikikomori da reclusão no Japão. Semelhante ao que seria uma assistência social, uma equipe tenta abrir a comunicação com os isolados por meio de cartas, ligações e algumas visitas presenciais. O objetivo é que as pessoas saiam de casa e consigam participar de um programa de formação profissional.
Palavra do especialista
O próprio paciente percebe que tem hikikomori? Como é o caminho até ele buscar ajuda?
Raramente o paciente perceberá, ele mesmo, que tem hikikomori e, muito menos, buscará ajuda sozinho. Os sinais costumam ser percebidos por um familiar — o que já é difícil, porque a família tende a se acomodar — ou algum amigo. Eles, provavelmente, não saberão dizer exatamente o que está acontecendo, mas são capazes de perceber que o comportamento não é normal e, assim, incentivam que a pessoa busque ajuda médica.
Há dificuldades no diagnóstico e no tratamento?
Muitas. O hikikomori ainda não faz parte dos diagnósticos rotineiros dos consultórios. Poucos profissionais estão por dentro do tema e, sem saber nomear o quadro, o paciente acaba tendo outro prognóstico. O engajamento em tratamentos, talvez, seja uma das principais limitações. É característico do hikikomori que ele não dê sequência. Por isso, é importante se atentar aos gatilhos e recaídas.
A pandemia parece ter piorado os casos de hikikomori em prevalência e gravidade?
Estudei isso nos últimos anos. Temos dados genéricos de algumas partes do mundo apontando, sim, um aumento na prevalência de casos, justamente pelo isolamento geral forçado. Esse cenário, inclusive, pode esconder alguns quadros de hikikomori. Acredita-se que a incidência seja bem maior do que se sabe.
Thiago Henrique Roza é psiquiatra. Tem projetos de pesquisa, principalmente, na área de avaliação de risco de suicídio, psiquiatria forense e medicina legal, transtorno bipolar, transtorno mentais relacionados ao uso de tecnologias, hikikomori, neuropsiquiatria e outros. Em 2021, recebeu o Fellowship Award, da Sociedade Japonesa de Psiquiatria e Neurologia
Por Correio Braziliense