Espetáculo sul-africano ‘Black off’ abriu 18ª edição do festival internacional de teatro. Atriz negra interpreta mulher branca e ironiza racismo de forma grotesca; peça será exibida em Ceilândia e Gama.
Pintada de branco, com uma peruca loira e lentes azuis, a atriz sul-africana Ntando Cele estrelou na abertura da 18ª edição do Cena Contemporânea, em Brasília, na noite desta terça-feira (22). A atriz, negra, interpreta uma mulher branca que incorpora as múltiplas faces do preconceito racial.
A peça “Black off”, da companhia de teatro Manaka Empowerment foi a primeira a se apresentar no festival (veja impressões do público ao final da reportagem). O espetáculo ainda será exibido nesta quarta (23) e quinta (24), às 21h no Teatro da Caixa, no sábado (25), em Ceilândia, e no domingo (26), no Gama.
No palco, o alter ego branco da atriz, Bianca White, é a expressão grotesca da naturalização do racismo – explorada durante todo o primeiro ato da peça. Por meio da personagem, Ntando revela de forma ridicularizada alguns clichês sobre os negros e ironiza comportamentos de “gente branca”.
Bianca White exalta egocentrismo, futilidade e demonstra desinformação sobre quase tudo o que fala. Neste ponto, reside a crítica de que a sociedade ignora a falta de conteúdo quando está por trás de uma pele branca.
“O racismo é mais ou menos igual em qualquer lugar, por isso o show pode vir da Suiça para cá”, diz Ntando.
O espetáculo mistura teatro, música e audivisual em uma sequência de cenas que se comunicam de forma descontraída. A relação entre Ntando, os três músicos que fazem a trilha sonora e o público ocorre de forma natural, não ensaiada.
Ironia ácida
O discurso pedante de Bianca White, que aparece intercalado por expressões de falsa modéstia e compaixão, revela de forma sutil e cômica esteriótipos negros difundidos pelo “mundo branco ocidental”, sobre cor da pele, comportamento, habilidades e heranças genéticas, explica o grupo.
A personagem expõe o racismo ao ridículo quando convida uma mulher negra da platéia a fazer uma sessão de meditação em que é conduzida a se concentrar em coisas brancas para alcançar o relaxamento.
“Pense em todas as coisas brancas que há em você, seus ossos, seus dentes… Sente-se melhor?”
Bianca White também diz que os negros não entendem a “arte complicada” e, ao longo da apresentação, interrompe a própria fala para fazer o que seria essa arte refinada, de difícil compreensão.
Em duas demonstrações, Bianca enche a boca com duas rolhas de cortiça e balança os cabelos loiros; depois coloca pregadores de roupa no rosto e canta uma música sobre prevenção ao Ebola.
“Os negros fazem muito sexo e estão sempre cansados. Por isso não vão ao cinema, ao teatro e não entendem arte complicada”, diz personagem.
Os estigmas que, ao longo de séculos, foram impostos aos negros aparecem ainda em críticas irônicas à solidariedade de filantropos que se deslocam até a África – durante a peça, o continente é abordado como se fosse um país – para “ajudar quem precisa”. Bianca White faz parte deste grupo e exibe imagens de mulheres africanas “atendidas” pela ONG que ela lidera.
Sem maquiagem
No segundo ato, despida das máscaras brancas, Ntando faz um pedido antes de cantar uma música de rock sobre o tema.
“Para as pessoas brancas que adoram ajudar a resolver os problemas dos outros. Por favor, parem.”
Depois de limpar o rosto no palco, em frente a uma câmera que reproduzia as imagens ao vivo em um telão, Ntanda começa a explorar a própria pele. “Manipulo meu rosto, faço caras e bocas que não são só engraçadas, mas conseguem provocar outras sensações na plateia.”
Ntando perguntou à platéia como as pessoas negras são chamadas no Brasil, ao que foi respondida “negro”. Logo em seguida, uma voz masculina ao fundo disse “macaco”. A atriz prosseguiu a encenação sem compreender o significado.
Ao final do espetáculo, Ntando se espantou com a tradução do termo. “Eu realmente senti um tom bastante agressivo, mas achei bom que ele tenha falado, porque dependendo do país onde fazemos essa pergunta, não recebemos resposta. Como se fosse um tabu.”
A peça se encerra com um show de rock, em que a estrela é o alter ego preto de Ntando, que ao contrário de Bianca White (o alter ego branco da atriz), não tem nome. Ntando canta quatro músicas que criticam a febre de adoção de crianças negras, os movimentos sociais que tentam “salvar a África” e o menosprezo às capacidades da população negra.
“Negros podem fazer as coisas por eles mesmos.”
Impressões do público
A produtora cultural Nininha Albuquerque, de 26 anos, que ficou em “extase” com o espetáculo. Para ela, uma das cenas que mais marcou foi quando Ntando representou a visão que o mundo ocidental tem da África.
A atriz fez uma espécie de “dança tribal” vestida com uma sacola estampada com figuras de animais em safari e uma garrafa pet na cabeça.
O secretário de Cultura do DF, Guilherme Reis, também esteve na abertura do festival. Ele, que é ator e diretor, foi o principal realizador do Cena Contemporânea, criado 1995 e disse que, desde então, vê o festival ganhar cada vez mais reconhecimento – dentro de fora do país.
A atriz Jéssica Cardoso, de 26 anos, se emocionou ao comentar a cena em que Ntando – que está grávida – diz para a platéia que todos vão achar o filho dela lindo nos primeiros anos de vida, mas, quando crescer, será só “mais um negro”. Jéssica é mãe de um menino de 2 anos.