Desenvolvido no Ceará, o curativo já foi testado em mais de 60 pacientes e promete ser uma alternativa mais barata e eficaz do que o método tradicional
A pele de tilápia é a nova promessa no tratamento de queimaduras. Desenvolvida no Ceará, a alternativa promete ser melhor e mais barata em relação à terapia tradicional utilizada no Brasil.
O tratamento das queimaduras pelo Sistema Único de Saúde (SUS), na maioria dos serviços de queimados, é feito com pomada e curativos feitos com gaze, que são trocados a cada dois ou três dias, conforme a gravidade da ferida. Segundo Fábio Carramaschi, cirurgião plástico do Hospital Albert Einstein, de São Paulo, a forma tradicional utilizada atualmente envolve o uso de pomada de sulfadiazina de prata, que possui função antimicrobiana.
Enquanto isso, em países como Argentina, Chile e Uruguai, o tratamento é feito com pele humana ou pele animal.
Segundo o cirurgião plástico Marcelo Borges, coordenador do SOS Queimaduras e Feridas do Hospital São Marcos, em Recife, idealizador do projeto, o tratamento tradicional é relativamente caro, justamente por conta da quantidade de material utilizado e das frequentes trocas de curativos, que também causam dor e desconforto ao paciente, o que gera a necessidade de administrar analgésicos e anestésicos, aumenta o trabalho da equipe e, consequentemente, os custos.
“Uma das coisas mais importantes do curativo com tilápia é que na queimadura superficial, a de segundo grau, ela fica até o final da cicatrização, algo em torno de dez dias, sem precisar trocar diariamente”, explica o coordenador.
Como funciona: aplicação do curativo
As tilápias são retiradas do açude Castanhão, em Jaguaribara, maior reservatório de água doce do Ceará, localizado a 260 quilômetros de Fortaleza. “As peles são lavadas no local de retirada com água corrente pela própria equipe, colocadas em caixas isotérmicas e levadas para o Banco de Pele na Universidade Federal do Ceará”, explica Edmar Maciel, cirurgião plástico coordenador da fase clínica em andamento no Instituto José Frota (IJF).
Depois de passarem pela esterilização inicial, são enviadas para São Paulo, ao Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen) da Universidade de São Paulo (USP), onde passam por uma radioesterilização, procedimento que elimina possíveis vírus e garante a segurança do produto. Quando voltam para o banco de pele do estudo, após cerca de 20 dias, as peles são refrigeradas, e podem ser utilizadas em até dois anos. “A pele da tilápia, quando colocada, adere-se à pele ‘tamponando’ a ferida. Ela causa um verdadeiro ‘plastrão’”, explica Maciel. Com isso ela evita a contaminação do meio externo e que o paciente perca líquido e proteínas, causando desidratação e prejudicando a cicatrização.
De acordo com o médico, o resultado tem sido bastante positivo. “Até o momento não observamos nenhuma contraindicação. O que estamos estudando são ajustes de pele, formas de colocação, melhor maneira de dar maior conforto ao paciente”, salienta.
Atualmente, o tratamento está disponível apenas para feridos por queimaduras do Instituto José Frota (IJF), em Fortaleza e já foi testado em mais de 60 pacientes.
Oportunidade no descarte
Borges, conta que tudo começou quando leu uma reportagem no Jornal do Commercio, de Pernambuco, que mostrava que apenas 1% da pele da tilápia utilizada no artesanato era reaproveitada na confecção de bolsas e sapatos. Os outros 99% eram descartados.
Em função da situação dos bancos de pele brasileiros, que estão com estoques reduzidos, Borges viu no descarte uma oportunidade e decidiu estudar a pele do animal para o tratamento de queimaduras. Durante dois anos o cirurgião tentou iniciar a pesquisa em seu estado, sem sucesso. Então, em 2014, ele teve a oportunidade de levá-la para Fortaleza e finalmente iniciar os estudos.
Peixe do Nilo
A tilápia, ou peixe do rio Nilo, chegou ao Brasil em 1971, no Ceará, e rapidamente se disseminou pelos outros estados e países vizinhos. “A tilápia é produzida em cativeiro e temos inúmeras pisciculturas no nordeste, principalmente na Bahia, em Pernambuco e no Ceará”, conta Maciel, que, junto de sua equipe, estudou a piscicultura do peixe.
Na primeira etapa do estudo, entre fases de laboratório e testes em animais, a análise da pele revelou que a tilápia contém uma grande quantidade de colágeno tipo 1 – duas vezes superior ao da pele humana – acelerando o processo de cicatrização. Além disso, a pele tem alto grau de resistência à quebra e elevado grau de umidade, características ideais para um curativo.
Outra vantagem é que os animais aquáticos têm menor risco de transmissão de doenças que os terrestres, comumente utilizados em outros países, como nos Estados Unidos e Europa. “A pele de animal mais usada é a pele de porco. O Brasil nunca teve uma pele animal registrada pela Anvisa, nem disponibilizada no Ministério da Saúde para tratamento. O Brasil está atrasado no tratamento local com pele quase 50 anos”, salienta Maciel.
Toda a pesquisa foi desenvolvida no Núcleo de Pesquisa e Desenvolvimento em Medicamentos (NPDM), da Universidade Federal do Ceará, sob a coordenação do pesquisador Odorico Moraes, financiada por um convênio entre o Instituto de Apoio ao Queimado, organização não governamental, e pela Enel, empresa distribuidora de energia elétrica no Ceará.
Pele de tilápia agiliza tratamento de queimaduras
Queimaduras
De acordo com o Ministério da Saúde, um milhão de pessoas sofrem queimaduras por ano no Brasil e a maior parte delas é de baixa renda. Entre os principais acidentes estão os ‘escaldamentos’ – feridas causadas pelo contato com líquidos ou vapores quentes – muitas vezes relacionado a acidentes de trabalho e à violência doméstica. No entanto, em todo o país há apenas 46 centros especializados.
De acordo com as diretrizes da Organização Mundial de Saúde (OMS), é recomendado um banco de pele para cada município com mais de 500.000 habitantes, mas não é o que acontece. Existem apenas quatro unidades: São Paulo, Porto Alegre, Curitiba e Recife, que atualmente se encontra desativado.
“Está fechado há três anos. Os outros três que ficam em Porto Alegre, São Paulo e Curitiba suprem apenas 1% da necessidade. Não temos pele para tratar queimados”, conta Edmar Maciel. Como em todo tipo de doação, a falta de informação, ainda é o principal problema quando se trata das doações de pele homóloga – ou seja, pele humana.
Para Carramaschi, cirurgião plástico do Hospital Albert Einstein, em São Paulo, a linha da tilápia é muito bacana e poderia ser “uma alternativa, uma forma barata de produzir algo que não dependa de um banco de doações”.