A Rússia passou meses expulsando empresas americanas de tecnologia ou observando-as sair por conta própria por causa de sua guerra na Ucrânia. Mas o país agora se encontra em um impasse com uma grande empresa de tecnologia: o Google.
Muitos dos serviços do Google, incluindo buscas, mapas, Gmail e, talvez o mais importante deles, o YouTube, continuam disponíveis na Rússia em um momento em que o Facebook, Instagram e Twitter não estão. A situação ilustra a difícil posição em que ambos os lados se encontram agora e o tênue estado atual do ecossistema de internet da Rússia.
A Rússia tentou isolar sua internet do mundo, mas parece reconhecer a possível reação dos cidadãos após banir os serviços mais populares. Por sua vez, o Google se manifestou contra as ações da Rússia, mas também tem incentivos estratégicos e morais para permanecer.
O governo russo continua tentando espremer a empresa do Vale do Silício, abrindo um novo processo contra o Google na sexta-feira (3) por sua suposta falha em armazenar dados de usuários russos dentro do país. O Google não respondeu a um pedido de comentário sobre esse movimento da Rússia.
Semanas antes, a subsidiária do Google na Rússia entrou com pedido de falência e interrompeu a maioria de suas operações comerciais depois que o governo assumiu o controle de suas contas bancárias no país.
“A apreensão da conta bancária do Google Rússia feita pelas autoridades russas tornou insustentável o funcionamento de nosso escritório no país, incluindo empregar e pagar funcionários baseados na Rússia, pagar fornecedores e cumprir outras obrigações financeiras”, disse um porta-voz do Google em nota para a CNN.
No entanto, o Google parou seu movimento de sair da Rússia completamente e a Rússia parou de forçá-lo a sair.
“As pessoas na Rússia confiam em nossos serviços para acessar informações de qualidade e continuaremos a manter disponíveis serviços gratuitos como os de busca, o YouTube, Gmail, Maps, Android e Play”, acrescentou o porta-voz.
O Google tomou algumas medidas para retirar seus serviços na Rússia, banindo os canais de mídia estatal russos e impedindo-os de vender anúncios, além de reprimir a desinformação sobre a guerra na Ucrânia.
Enquanto isso, o ministro do desenvolvimento digital da Rússia, Maksut Shadayev, descartou a proibição total do YouTube – um dos serviços online mais populares do país. “Não estamos planejando bloquear o YouTube”, disse Shadayev, segundo a agência de notícias russa Interfax. “Sempre que bloqueamos qualquer coisa, devemos entender claramente que nenhum dano será causado aos nossos usuários”, acrescentou.
‘Último homem de pé’
Para o Google, há um claro valor estratégico em manter seus serviços ativos em um país com mais de 100 milhões de internautas – e um mercado no qual já tem uma posição forte.
“Vários serviços do Google obtiveram uma participação de mercado significativa na Rússia, que a empresa pode querer manter na esperança do fim da guerra e da suspensão das sanções”, disse Mariëlle Wijermars, professora assistente de segurança cibernética e política na Universidade de Maastricht, na Holanda, cujo trabalho se concentra na política russa de internet. “Dado o esforço da Rússia para estabelecer a soberania digital, pode ser difícil entrar novamente no mercado”.
Mas alguns especialistas em governança da internet argumentam que a escolha do Google de manter os serviços funcionando no país pode ter mais um imperativo moral do que empresarial.
“Acho que o lado moral é um negócio maior”, disse Daphne Keller, diretora do programa de regulamentação de plataformas do Centro de Políticas Cibernéticas da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos. “Manter a informação fluindo para dissidentes na Rússia, ou pessoas que querem informações de uma fonte que não seja a mídia estatal, é incrivelmente importante”.
O Google não respondeu a perguntas sobre seus motivos para manter seus serviços ativos na Rússia, mas a CEO do YouTube, Susan Wojcicki, expôs na semana passada o papel que a plataforma de vídeo se vê desempenhando no país.
“A razão pela qual ainda estamos servindo na Rússia e acreditamos que isso é importante é a de que somos capazes de fornecer notícias independentes para a Rússia”, disse Wojcicki a uma audiência no Fórum Econômico Mundial em Davos, na Suíça. “E assim, o cidadão comum na Rússia pode acessar gratuitamente as mesmas informações que você pode acessar aqui em Davos, o que acreditamos ser realmente importante para ajudar os cidadãos a saber o que está acontecendo e ter perspectivas do mundo exterior”.
O YouTube é usado por cerca de três quartos da população online da Rússia, ou mais de 77 milhões de pessoas, segundo estimativas da Insider Intelligence. Apesar dos avisos contínuos do governo russo para remover conteúdo, o YouTube continua sendo um dos poucos links digitais entre a Rússia e o mundo exterior, especialmente porque outras plataformas globais foram bloqueadas.
“O YouTube, em particular, é o último homem de pé, por assim dizer”, afirmou Alina Polyakova, presidente e CEO do Centro para Análise de Políticas Europeias, com sede em Washington DC. “O Google é a última empresa de pé nessa batalha mais ampla entre um governo autoritário e uma empresa de tecnologia ocidental que fornece um dos últimos espaços restantes para livre expressão na Rússia”. O Google é uma das várias empresas das quais o Centro recebe “uma pequena parte” de seu financiamento na forma de doações, de acordo com Polyakova.
Por que a Rússia fechou os olhos com o Google
A Rússia usou a guerra na Ucrânia para intensificar seus esforços para isolar sua internet do resto do mundo, construindo o que alguns descreveram como uma cortina de ferro digital. Mas sua decisão de não banir os vários serviços do Google mostra as limitações da internet caseira e mais restrita da Rússia.
O YouTube não é apenas popular no país, mas as autoridades russas há muito usam a plataforma para divulgar suas próprias mensagens, com canais de mídia estatais como o RT e Sputnik atingindo milhões de assinantes antes de serem retirados do ar.
“A Rússia usa ativamente o YouTube para disseminar propaganda”, disse Wijermars. “Para alcançar as gerações mais jovens que assistem à televisão menos tradicional, a divulgação online tanto de programas de TV quanto de formatos online mais adaptados tem sido importante para ampliar o alcance de suas narrativas”.
Ao contrário da rede social local VK e do mecanismo de busca Yandex, não existem alternativas locais comparáveis ao YouTube na Rússia (o RuTube, apoiado pelo governo, não conseguiu alcançar o mesmo nível de popularidade).
“Eles não têm uma alternativa doméstica real, e acho que eles temem uma reação porque muitos russos a usam [a plataforma]”, disse Polyakova. “E, francamente, isso dá ao YouTube muita vantagem”.
O YouTube não é a única plataforma de tecnologia ocidental popular que a Rússia deixou quieta. O WhatsApp, o aplicativo de mensagens móvel de propriedade da Meta, empresa controladora do Facebook, ainda está operacional, com o governo russo dizendo que é isento porque é um serviço de mensagens privadas e não uma rede social pública.
Mas enquanto a clemência da Rússia em relação ao YouTube até agora se estendeu ao Google como um todo, o Facebook e Instagram que são as outras plataformas da Meta, foram as primeiras a serem bloqueadas.
O YouTube também é apenas um dos vários serviços do Google nos quais os russos confiam.
“Não está claro o que aconteceria, por exemplo, com seu sistema operacional Android, que é amplamente usado na Rússia, se a Rússia expulsar o YouTube”, disse Wijermars. “A longa lista de empresas de tecnologia que anunciaram que deixarão o mercado russo, juntamente com o impacto das sanções, torna a economia digital da Rússia muito vulnerável a essas interrupções”.
No momento, parece que tanto a Rússia quanto o Google estão dispostos a ficar relutantes e esperar que o outro corte o cordão.
“Acho que certamente o governo russo está jogando um jogo muito delicado aqui”, disse Polyakova. “Obviamente há uma linha que eles não querem cruzar e forçar esta empresa a sair completamente”.
Fonte: CNN