O primeiro pronunciamento do presidente russo, Vladimir Putin, desde que suas tropas invadiram a Ucrânia, 210 dias atrás, teve ameaça de uso de armas nucleares e anúncio de “mobilização parcial” de reservistas. “Em sua política agressiva anti-Rússia, o Ocidente cruzou todas as linhas. (…) Alguns políticos irresponsáveis falam não somente em enviar armamentos de longa distância à Ucrânia, sistemas de mísseis que permitiriam atacar a Crimeia e outras regiões russas. Até chantagem nuclear entrou no jogo”, declarou o líder do Kremlin, em discurso gravado e exibido ontem. “Nosso país tem uma variedade de armas de destruição em massa. Sem dúvida, usaremos todos os meios à nossa disposição para proteger a Rússia e o nosso povo. Isso não é um blefe.” Em Nova York, onde falou à Assembleia Geral das Nações Unidas, o presidente dos EUA, Joe Biden, disse que a Rússia “violou descaradamente” princípios centrais da Carta da ONU e advertiu: “Uma guerra nuclear não pode ser vencida e não deve ser travada”.
Putin fez referência aos referendos, anunciados na terça-feira por separatistas pró-Rússia, para anexar as regiões de Donetsk e Luhansk, no leste da Ucrânia, e de Zaporizhzhia e Kherson, no sul. “Faremos de tudo para garantir condições seguras para os referendos, a fim de que o povo possa expressar sua vontade. Apoiaremos a decisão sobre o seu futuro.” Ele insistiu que a convocação envolve cidadãos que “já serviram e que têm experiência pertinente”. “Estamos falando apenas de uma mobilização parcial”, insistiu.
Serguei Shoigu, ministro da Defesa russo, estimou que a ordem contemplará 300 mil reservistas. Protestos contra a medida se espalharam por 38 cidades da Rússia, anunciou a ONG OVD-Info, ao denunciar a prisão de 1.178 manifestantes.
“Punição justa”
À noite, Volodymyr Zelensky, líder da Ucrânia, falou à Assembleia Geral, por meio de videoconferência, e defendeu a instalação de um tribunal de crimes de guerra para julgar a Rússia. “Um crime foi cometido contra a Ucrânia e nós pedimos uma punição justa”, disse. “A Ucrânia quer a paz. A Europa quer a paz. O mundo quer a paz. E temos visto quem é o único que deseja a guerra”, acrescentou.
A Organização do Tratado do Atlântico (Otan) denunciou uma “retórica nuclear perigosa” de Putin e prometeu seguir “apoiando a Ucrânia”. “A paz mundial está em perigo”, disse, por sua vez, Josep Borrell, chefe de política externa da União Europeia. Ele considerou “inaceitável” ameaça com armas nucleares e instou a comunidade internacional a se unir.
Professor de relações internacionais da Universidade de Brasília (UnB), Juliano Cortinhas explicou à reportagem que, apesar de pressionado, Putin aumentou a coação sobre a Ucrânia. “Vivemos um momento de acirramento de ambos os lados. Isso faz com que a escalada se torne ‘muito perigosa’. Putin colocou à mesa a cartada das armas nucleares. Essa ameaça é séria e o mundo precisa levá-la em consideração”, alertou. Ele lembrou que as potências ocidentais cometeram um erro de cálculo ao duvidarem da invasão à Ucrânia. “A solução que vejo como possível para evitar perdas seria uma tentativa de aproximação com a Rússia para buscar uma solução negociada, mesmo que isso leve a perdas de territórios para a Ucrânia.”
De acordo com Cortinhas, os referendos anunciados pelos separatistas pró-Rússia em quatro regiões da Ucrânia seriam uma tentativa de Putin de legitimar a presença russa e a anexação de territórios fronteiriços. “Com essas consultas, Putin teria um argumento a mais. No entanto, ele não está disposto a se retirar totalmente da Ucrânia, pois investiu muito na guerra e não aceitará uma derrota plena”, comentou. “Se lançar uma ou duas armas nucleares em direção à Ucrânia, poderá causar uma escalada atômica mundial e prejuízos enormes para a própria Rússia, por conta da nuvem radioativa. As consequências seriam catastróficas e o cenário é bastante sombrio.”
Angelo Segrillo, professor de história da Universidade de São Paulo (USP), concorda com o colega da UnB. Ele afirmou ao Correio que a mobilização parcial anunciada por Putin representa uma escalada na guerra. “Por um lado, mostra uma certa fraqueza do presidente russo, pois isso era algo que ele pretendia evitar. Por outro lado, ele eleva as apostas, o que é tremendamente perigoso. Isso se soma ao contexto dos referendos. Um ataque às regiões eventualmente anexadas seria considerado uma agressão à própria Rússia”, explicou Segrillo. “Segundo a doutrina militar de Moscou, um ataque à Rússia que seja uma ameaça extremamente séria pode ser respondida até mesmo com armas nucleares.”
Divisão
Para Segrillo, a menção de Putin ao uso de arsenal atômico é mais um blefe ou uma indireta. “Putin quer dividir o Ocidente, ao mostrar que não recuará. Isso é especialmente perigoso pois ele colocou toda a sua carreira nessa guerra. Se perder o conflito, acho até que saia do poder”, advertiu. “É a vida de Putin que está em jogo ali.” O especialista classifica a atual conjuntura como “séria” e de “escalada”. “A Primeira Guerra Mundial começou assim, sem que ninguém achasse que aquilo causaria um conflito generalizado”, lembrou Segrillo, em alusão ao assassinato do arquiduque Ferdinando, herdeiro do Império Austro-Húngaro, em 28 de junho de 1914. “Em algum momento, a Ucrânia deverá aceitar o cessar-fogo.”
Por sua vez, Rafael Duarte — professor de segurança internacional do Centro Universitário IESB — vê o pronunciamento de Putin como parte de uma retórica usada para justificar a guerra e a não intervenção da Otan. “Ele subiu o tom nas ameaças porque sofreu diversas baixas no front, após os ucranianos usarem o equipamento bélico cedido pela aliança ocidental. Ele precisa revidar para mostrar força, internamente. Isso emite um alerta às democracias. Para usarem armas, elas dependem de anuência de seus parlamentos e de seu povo. Isso é um recado que gera muito mais alarme e alarde para as decisões a serem tomadas”, explicou ao Correio.
Duarte avaliou que Biden foi feliz ao pontuar que uma guerra nuclear não deixa vencedores. “Todos perdem. Todo mundo sabe que Putin não usará armas atômicas, porque isso é um tipo de agressão que legitimaria uma ação coletiva diretamente contra Moscou. Em termos de ações práticas, não vejo isso acontecendo. É mais uma subida de tom em uma guerra de narrativas.”
Eu acho…
2018. Crédito: Arquivo Pessoal. Mundo. Europa. Professor Juliano da Silva Cortinhas.(foto: Arquivo Pessoal)
“A Ucrânia teve sucesso, nas duas últimas semanas, em várias operações. Tal êxito tem por base um processo longo de envio de armamentos do Ocidente para a Ucrânia, além de treinamento das forças ucranianas. Isso fez com que as tropas do país tivesse vantagem sobre as russas. Também possibilitou um ganho territorial, o que pressionou Putin, inclusive internamente. Hoje, mil pessoas foram presas em várias cidades da Rússia, por protestarem contra as medidas tomadas por Putin. Há um processo de debandada do país aumentando.”
Juliano Cortinhas, professor de relações internacionais da Universidade de Brasília (UnB)
Angelo Segrillo, professor de história da USP(foto: Fotos: Arquivo pessoal)
“Até onde Putin pode ir é um grande perigo. Em relação ao uso de armas nucleares, creio que o presidente russo as evitará ao máximo. Caso aconteça, ele usará armas táticas, que não provocam destruição em massa e têm efeito mais localizado. Acho que ele poderia adotar esse recurso em último caso. Por exemplo, se os quatro territórios (Zaporizhzhia, Kherson, Donetsk e Luhansk) se tornarem parte da Rússia, após o referendo, e a Ucrânia conseguir retomá-los, essa seria uma situação que ele poderia até usar essas armas.”
Angelo Segrillo, professor de história da Universidade de São Paulo (USP)
14/10/2016. Crédito: Arquivo Pessoal. Mundo. Denilde Holzhacker, professora de Relações Internacionais da ESPM São Paulo.(foto: Francisco Emolo/Jornal da USP)
“A posição de Putin reflete, em parte, o avanço nas últimas semanas do Exército ucraniano, que começou a pressionar as áreas sob domínio russo. A convocação dos reservistas demonstra todas as vulnerabilidades e fragilidades da Rússia na manutenção do conflito. Esse posicionamento mais ofensivo do Putin busca criar um fato novo e se reposicionar em frente ao conflito. Mas isso causa uma série de instabilidades. A reação dos EUA e da Europa foi bastante enfática. Entramos em uma nova fase de discussão sobre como conter o poderio russo.”
Denilde Oliveira Holzhacker, professora de relações internacionais da ESPM-SP
Por Correio Braziliense