Médicos não permitiram fazer imagens do local, e a circulação foi restrita
DIVULGAÇÃO/LEON RODRIGUES/PREFEITURA DE SÃO PAULO
Local de internação dos dependentes químicos após a dispersão da Cracolândia, o Hospital Municipal Bela Vista – Santa Dulce dos Pobres, no centro de São Paulo, mudou algumas áreas internas para receber os novos pacientes. A enfermaria de saúde mental não tem os aparelhos tradicionais que acompanham os sinais vitais ou que armazenam remédios. Tudo foi retirado porque pode ser perigoso quando os pacientes estão agitados.
O único contraste com as paredes lisas e brancas são bandeiras coloridas de papel de seda que atestam a chegada das festas juninas. A reportagem visitou o Hospital na última sexta-feira.
Por questões éticas, os médicos não permitiram fazer imagens do local e a circulação foi restrita. A enfermaria tem cinco dormitórios, com dois leitos e banheiro em cada um. Os médicos dizem que querem um espaço mais humanizado para os pacientes.
Atrás de uma porta sem visor, a enfermaria é isolada do resto do hospital. São dez leitos abertos em abril e ocupados por pacientes com transtornos causados pelo uso de droga. Foram internados por vontade própria ou involuntariamente – com autorização de familiar e a assinatura do psiquiatra.
Nesse formato, ele pode ser internado contra sua vontade. A medida, permitida pela lei, tem sido adotada pela Prefeitura, sob contestação do Ministério Público Estadual, que abriu inquérito para apurar as ações da Prefeitura.
Desde 27 de abril, 35 pessoas passaram pelos leitos – 23 contra a vontade e 12 voluntariamente. Na segunda, havia seis internados (dois involuntários e quatro voluntários).
“Não chegamos a volume de internações que pudesse resolver o problema de álcool e drogas na cidade. Há várias equipes na rua tentando a primeira internação voluntária das pessoas nas cenas de uso”, diz Luiz Carlos Zamarco, secretário municipal de Saúde.
“A involuntariedade é um momento sensível na vida do paciente com transtorno mental, mas se trata de decisão técnica precisa”, diz Gabriel Furian, coordenador da Enfermaria de Saúde Mental. “A gente indica quando o paciente não tem capacidade crítica sobre sua situação e pode colocar em risco a si mesmo e outras pessoas”, completa.
A medida divide especialistas. Na sexta, nota técnica assinada por nove instituições, entre elas, a Plataforma Brasileira de Política de Drogas e o Conselho Regional de Psicologia de São Paulo, classifica a internação sem consentimento como inversão do processo terapêutico, pondo a “internação involuntária como primeira opção e não a última e excepcional estratégia”.
O psiquiatra Flávio Falcone adota raciocínio semelhante. Em dois anos no programa Recomeço, do governo estadual, Falcone diz ter acompanhado mais de cem internações de dependentes químicos. Para ele, só um caso de internação involuntária foi bem-sucedido.
“Era uma senhora que vivia sozinha e tinha problemas de alcoolismo. A filha pediu a internação, mas ia acompanhá-la toda a semana. A retomada do vínculo familiar contribuiu muito com a recuperação”, diz ele, que atua no programa de atendimento a dependentes químicos da Unifesp.
O secretário rebate. Ele afirma que são observados aspectos clínicos. “Eles podem ter quadros de desnutrição e insuficiência respiratória. Estamos avaliando o agravamento do problema mental, mas também situações clínicas.”
Exames de espirometria (teste do sopro) mostram que 46% dos dependentes têm quadros de DPOC (Distúrbio Obstrutivo e Restritivo) na função pulmonar de risco leve a moderado. No Hospital Bela Vista, os pacientes não ficam só deitados, mas podem circular e conversar com os outros.
A direção afirma que os 580 funcionários têm sido treinados para atender “sem estigmas, preconceito ou medo”, como dizem os médicos. Há protocolos específicos conforme a substância que causa a dependência. Usuários de álcool podem desenvolver síndrome de abstinência nas primeiras 72 horas e aí o protocolo indica diazepam, remédio para transtornos de ansiedade, além da reposição de vitaminas.
No caso dos usuários de crack, com crises intensas de abstinência, os médicos usam tranquilizantes e antipsicóticos. Os leitos são adaptados para a contenção física quando preciso. “A ideia não é sedar o paciente, mas que a medicação ajude a controlar a fissura, que é muito intensa”, diz Furian.
A lei fixa internação máxima de 90 dias. O familiar pode pedir interrupção do tratamento a qualquer hora. Especialistas veem riscos na saída. “Ao se desintoxicar, a pessoa precisa de acompanhamento individualizado, além de moradia, trabalho e renda. Sem isso, é como enxugar gelo”, compara Arthur Pinto Filho, promotor de Saúde Pública.
Segundo Zamarco, nenhum dos 35 pacientes já teve alta definitiva. Após a desintoxicação no hospital, eles continuam o tratamento em um dos 97 Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) da cidade – 32 deles especializados em álcool e outras drogas. O andar térreo do CAPS IV, na Praça Princesa Isabel, se parece com um pronto-socorro.
Duas salas socorrem casos ligados ao uso abusivo de drogas, como taquicardia, aumento da pressão arterial, desidratação e intoxicação. O local também atende feridos após brigas no território.
Dados da Prefeitura indicam que a dispersão dos usuários e traficantes elevou a busca por tratamento. Neste CAPS, o total de atendidos subiu 34,7% de janeiro para maio.
Mas parte dos usuários reclama justamente da falta de apoio. Na quinta, dia da visita do Estadão, W.T.D.S., de 42 anos, diz não ter conseguido vaga de internação para tratar do consumo abusivo de crack. “É a terceira vez que venho aqui e não consegui”, diz ele, de Fartura (SP) há cinco anos na capital. “Só dão atendimento laboratorial, como dar soro e medir a pressão. Aí, a pessoa volta para a rua, usa drogas novamente e não melhora.”
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Por R7