Apesar do fomento insuficiente, os artistas se reinventam em nome do palco. O Diversão & Arte lista e celebra os destaques de 2016
Em 2014, eles tiveram que se acorrentar no Palácio do Buriti para exigir os pagamentos devidos pelo Fundo de Apoio à Cultura (FAC), principal ferramenta pública de fomento à cultura brasiliense. No ano seguinte, mostraram-se inventivos e deixaram bem claro que o FAC ajuda, mas não é a única forma de se fazer teatro nesta cidade. Longe disso. Partiram para editais nacionais, acreditaram na bilheteria e nos financiamentos coletivos.
Neste 2016, o teatro de Brasília ensaia uma saída dos escombros provocados pelos anos anteriores de recessão orçamentária. Embora as políticas públicas se mostrem ainda incapazes de sustentar a demanda de produção com eficiência, os artistas não esmorecem.
Seja por meio do FAC ou do ingresso direto público, seja no palco ou nas ruas, seja no Plano ou nas regiões administrativas, há uma gente disposta ao que for preciso pelo ofício artístico. Os atores Gustavo Haeser, Ana Flavia Garcia e Giselle Rodrigues figuram nessa lista de artistas incansáveis, que insistem na vocação e não desistem da cultura de Brasília. Em 2016, eles deram o que falar.
Guerreiros
Integrante do grupo Tripé, Gustavo Haeser roda toda a cena teatral do DF. Está nas filas dos espetáculos, nas ocupações culturais, nas manifestações e no palco. Neste ano, ele foi visto em duas produções – Entre quartos e O novo espetáculo – e se destacou como uma das mais expressivas vozes jovens da classe.
Quem também esteve à frente de iniciativas de destaque foi a bailarina e professora Giselle Rodrigues. O ano de 2016, em particular, celebra em definitivo o retorno de Giselle aos palcos, depois de duas décadas consumidas com pesquisas no meio acadêmico. Foi por meio do delicado espetáculo Fio a fio – no qual ela divide o palco com Édi Oliveira – que tivemos a chance de ver nossa principal dançarina contemporânea em ação. Embora a peça seja do final de 2015, foram nestes últimos 12 meses que a notícia correu solta por aqui e muitos puderam revê-la no palco.
Falando em palco, não há tempo ruim para a atriz e diretora Ana Flavia Garcia. Ela parte para a ignorância quando o assunto é teatro e vence qualquer adversidade quando acredita no projeto. Em 2016, por exemplo, ela esteve envolvida em cinco produções que nasceram nos fundos da própria casa. Mas será pelo espetáculo Tsunami que devemos lembrar de Ana neste ano. Com apresentações somente em escolas públicas do DF, a atriz impressionou ao personificar uma mulher comum que precisa lidar com o cotidiano árduo. Emocionou alunos e professores, flagrados aos prantos nos auditórios espalhados pelas escolas da cidade. Muitos deles, fundamental dizermos, Experimentando o teatro pela primeira vez.
Enquanto houver espectador, haverá espetáculo. E Gustavo, Giselle e Ana estarão lá para se certificar que eles aconteçam.
Intercâmbios
Cada vez mais, os artistas de Brasília dialogam com outras praças. São muitos os nomes do DF que rodam o país carregando espetáculos nascidos aqui. Adaptação, de Gabriel F. Calonge, foi apresentado em 45 cidades por meio do festival Palco Giratório, do Sesc. O grupo ATA também viajou e levou Ensaio geral (foto) para Salvador e São Paulo, por exemplo. Na capital paulista, inclusive, o espetáculo foi apresentado na sede do sagrado Teatro Oficina e gerou novo encontro entre Hugo Rodas e Zé Celso, talvez, os dois maiores nomes do teatro de resistência no Brasil. No Rio de Janeiro, Noctiluzes passou rapidamente mas agradou, assim como a intervenção cênica e urbana Entrepartidas, do Teatro do Concreto. E vale anteciparmos que, em 2017, os intercâmbios transgridem as barreiras nacionais. O coletivo Aisthesis parte para um laboratório em Portugal, Giselle Rodrigues e Édi Oliveira levam Fio a fio para a Costa Rica e o grupo Tripé se apresenta na Irlanda.
Dramaturgia
Sempre afiado no texto, Sergio Maggio (foto) nos brindou com um pungente espetáculo sobre a ditadura, Duas gotas de lágrimas no frasco de perfume. A peça traz relatos contundentes e ficou marcada pela sensibilidade da dramaturgia e pela força do elenco. O infatigável Jonathan Andrade, com quem todos aparentemente querem trabalhar, voltou a ter um ano de entrega incondicional. Em determinado período, ele chegou a ter três peças em cartaz com as quais estava diretamente comprometido. Entrepartidas, 5 minutos e Poeira são alguns dos espetáculos que contaram com a dramaturgia de Jonathan, mas foi com Tsunami que ele se superou e apresentou uma das mais delicadas produções do ano. No âmbito dramatúrgico, vale sempre acompanhar o trabalho de James Fensterseifer e de Alexandre Ribondi. Fundamental, ainda, ressaltarmos a celebração à diversidade provocada pela festa-espetáculo Ultra-romântico, do grupo Liquidificador, e a problematização do racismo apontada pela peça Pentes.
Festivais
No que diz respeito a festivais de teatro, Brasília está bem contemplada. Nosso querido Cena Contemporânea, apesar de uma edição menos expressiva, cumpriu importante papel ao favorecer as regiões administrativas e ao ocupar palcos alternativos. O Sesc desempenha figura protagonista nesse quesito por conta do Prêmio Sesc do Teatro Candango e do Palco Giratório. Um salve, inclusive, para a tríade que estampa nossa foto principal e que foi destaque justamente na premiação. Gustavo foi escolhido melhor ator, Giselle levou de melhor atriz e Ana concorreu como diretora na categoria de teatro infantil no Prêmio Sesc do Teatro Candango. O Palco Giratório, por sua vez, coloca espetáculos do DF para rodar e traz produções de fora para cá, a exemplo de Why the horse? (foto), protagonizado pela absurda Maria Alice Vergueiro. Repercutiram positivamente também o Seminário Internacional de Dança e o Festival Primeiro Olhar, dedicados aos pequenos espectadores.
De lá para cá
Como sempre, os produtores locais arregaçaram as mangas para trazer o melhor do teatro nacional para a capital federal. Desde sucessos comerciais a produções independentes. Entre aqueles que provocaram fila, Miguel Falabella garantiu risos em God, a insossa mas popular Cissa Guimarães foi vista em Doidas e santas e Carolina Ferraz esteve à frente de Três dias de chuva, dirigida por Jô Soares. Celebrando 50 anos de carreira, Denise Stoklos apresentou três espetáculos na Caixa, Vera Holtz defendeu Shakespeare em uma difícil montagem de Timon de Atenas e o mestre Zé Celso (foto) acompanhou o impeachment de Dilma em Brasília, durante temporada do provocativo Pra dar um fim no juízo de deus.
Despedidas
A temporada, infelizmente, também acabou marcada pelas despedidas. Nos derradeiros dias do ano passado, o Natal de 2015 ganhou ares melancólicos por conta da morte da atriz Verônica Moreno. A artista cearense foi fundamental na descentralização das artes no Distrito Federal. Em 2016, tivemos que dizer adeus ao ator Dimer Camargo Monteiro (foto), figura querida na classe e um dos mais importantes nomes dos palcos da cidade. O agitador e produtor cultural Hans Tramm também partiu cedo, deixando um legado inquestionável para a cultura. Em outubro, a “dama da ópera” Asta – Rose Alcaide morreu aos 94 anos. A bailarina era um ícone da vida candanga.
//Análise da notícia
Representação
Diego Ponce de Leon*
Há de haver injustiça em qualquer lista que assuma a pretensão de sugerir o melhor disso ou daquilo. Não se intenta nesta página o enaltecimento desses em detrimento de outros. Justamente o oposto. Busca-se uma representatividade coletiva do que pulsa no teatro da cidade, de forma a elencar nomes que pensam em formação de público, pesquisa, elaboração, buscas alternativas por plateia.
Vale, portanto, desenharmos um panorama amplo de quem vive teatro em Brasília. Aplaudirmos os que revindicam do governo, os que ousam não depender do FAC, os que fazem bom uso do recurso, os que partem para outras terras, os que ficam, os que já se foram e tanto fizeram.
Acima de tudo, neste ano, celebra-se a inversão de êxodo teatral. Sem os palcos principais no centro, o Plano teve que adotar os teatros das demais regiões. Uma dinâmica que precisa se expandir e se manter, até que os filhos de uma classe média midiática e aculturada descubram a importância do teatro em uma formação cidadã. Como me disse Jô Soares em entrevista, neste ano, “o teatro é uma arma política mesmo quando não quer”. Vamos nos a(r)mar.
*Diego é o setorista, correspondente e crítico de teatro, crítico convidado de festivais de teatro pelo país e pesquisador pela UnB na área de artes cênicas.