Temos a satisfação de oferecer em edição especial aos nossos leitores uma entrevista que nos foi gentilmente concedida por Antonio Artequilino, um pesquisador que ganhou o respeito da academia e a notabilidade dos segmentos mais esclarecidos e progressistas que, preocupados com o baixo nível de discussão dos grandes temas nacionais, valorizam a sua postura de pensador crítico, bem como suas atitudes de lucidez e de resistência diante das mazelas, distorções, injustiças, desilusões e incertezas que tanto sofrimento causam ao nosso povo.
Sobre o nosso entrevistado de hoje a Professora Doutora Orlinda Carrijo Melo afirmou o seguinte ao prefaciar o livro Leitura na prisão: “Artequilino demonstra uma independência intelectual e acadêmica que renova as formas arcaicas de produção do conhecimento. É aí que emerge a beleza da sua linguagem escrita: o texto flui livre, sensível mas, ao mesmo tempo, com o rigor científico que a pesquisa acadêmica exige”.
Antonio Artequilino, trabalha atualmente como Consultor Educacional e se debruça na leitura de diversas obras que poderão contribuir com o desenvolvimento da investigação que almeja realizar em nível de pós-doutorado. Possui licenciatura e bacharelado em História pela Universidade Federal de Goiás (2003), realizou o curso MBA – Formação Geral para Executivos pela FIA/USP – Fundação Instituto de Administração da Universidade de São Paulo (2004), fez pós-graduação em nível de especialização na área de Educação de Jovens e Adultos na UNB -Universidade de Brasília (2005), detém título de mestre em educação pela Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás (2009) e possui título de doutor em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2018). Foi professor de escola pública na década de 1990. Trabalhou por mais de 25 anos como funcionário do Banco do Brasil em diversas áreas dos níveis operacional, tático e estratégico, onde foi também educador corporativo e procurou contribuir com o desenvolvimento profissional e pessoal das pessoas no espaço organizacional. Ministrou aulas no ensino superior, desenvolveu ativamente projetos de educação em comunidades carentes e proferiu centenas de palestras em escolas, empresas e órgãos públicos. Os temas das suas palestras sempre assumiram preponderantemente a defesa da dignidade humana por meio da articulação que envolve trabalho, ética, cidadania e educação. Integrou a Comissão Científica do Congresso Brasileiro de Treinamento e Desenvolvimento. Trabalhou como Coordenador-Geral de Relações do Trabalho no âmbito do extinto Ministério do Trabalho em Brasília de 2016 a 2017, período em que coordenou os trabalhos da Comissão da Verdade no âmbito do referido ministério e realizou trabalhos de cunho técnico e educativo com diversos segmentos do movimento sindical laboral e patronal. Publicou dois livros: “Em nome dos silenciados” e “Leitura na prisão” (ambos publicados pela Editora Schoba em 2012), e se prepara para publicar nas próximas semanas o seu terceiro livro “Sindicatos dos trabalhadores bancários: formações discursivas em concorrência” pela editora Appris.
Brasil 060 News – É com grande satisfação que o recebemos no nosso site de notícias. O que o senhor acha da decisão do nosso editorial de oferecer diariamente aos nossos leitores um poema extraído do seu livro “Em nome dos silenciados”? Quais são as contribuições que poderão advir da leitura dos seus poemas?
Antonio Artequilino – Peço humildemente que as formalidades sejam deixadas de lado e que a forma de tratamento seja “você” durante toda a entrevista. Sinto-me lisonjeado e agradeço a oportunidade ímpar que me foi oferecida de compartilhar um pouco de poesia num mundo em que a rudeza, o egoísmo, a intolerância, a indiferença e o fanatismo ameaçam o pouco de humanidade que ainda resiste e persiste dentro de cada um de nós. Na realidade, ao escrever os meus versos, senti-me instigado a desafiar a força do discurso fatalista, egoísta, dogmático e reacionário feito pelos segmentos de nossa sociedade que defendem o individualismo mesquinho, a competitividade exacerbada e a lógica da exclusão dos menos favorecidos. Nesse sentido, respondo com lucidez e modéstia que as possíveis contribuições advindas da leitura dos meus poemas só poderão ser reconhecidas ou não pelos próprios leitores em suas respectivas singularidades. Afirmo, no entanto, que os meus poemas valorizam a resistência consciente e denunciam a submissão das classes populares, dos trabalhadores, das minorias e dos segmentos estigmatizados da nossa sociedade que sofrem com o amordaçamento cotidiano imposto por um sistema sócio-político-econômico que é, em sua essência elitista, desumano, injusto, covarde, perverso e opressor. Acredito que, ao poetizar a vida e a realidade em nome dos seres humanos silenciados, posso assumir o amor que sinto pela humanidade como princípio ético-crítico.
Brasil 060 News – O que o motivou a escrever o livro “Em nome dos silenciados”?
Antonio Artequilino – Os motivos para escrever um livro de poemas críticos, livres, contemporâneos e, preponderantemente, de cunho social partem do meu inconformismo diante da naturalização das desigualdades sociais e do predomínio das injustiças em todas as suas variantes. Pode parecer muita pretensão da minhas parte, mas ao empreender em nome dos pobres, dos índios, das mulheres, das crianças, dos negros, dos trabalhadores e de todos os desprivilegiados uma poética de denúncia e de resistência, exerço o direito de me indignar e de me posicionar convictamente a favor dos seres humanos oprimidos, explorados, enganados, discriminados, inferiorizados, estigmatizados e subjugados. É necessário denunciar a barbárie que se impõe sob a forma um modelo injusto, brutal e reacionário de sociedade que, ao assumir a mediocridade do seu egoísmo e enaltecer o individualismo revela-se totalmente subordinada aos desígnios hegemônicos do capital, do consumismo, da hipocrisia e da indiferença.
Brasil 060 News – Vamos nos debruçar um pouco sobre alguns dos seus poemas. Percebemos que o problema do analfabetismo no Brasil é tratado com uma fina ironia no poema “Cale-se! Analfabeto de pai e mãe!”:
“Sim, ficarei calado.
Não tenho o direito de nada dizer…
Se não estudei não posso reivindicar!
A culpa é minha, perdoem-me!
Se nas estatísticas do analfabetismo estou
Paguem-me salários irrisórios!
Desrespeitem-me com o seu preconceito!
Não me ofereçam alternativas…
Sei que não tenho respaldo pra falar
Dos anos difíceis da infância e juventude,
Das oportunidades negadas,
Da ausência total do Estado,
Da hipocrisia de uma sociedade desigual!
Ao ler a história da minha vida,
Percebo-me letrado no sofrimento,
Analfabeto na decodificação dos meus direitos”.
Professor, o que há de mais importante na compreensão desse poema?
Antonio Artequilino – Trata-se de poema que denuncia a subalternidade e a humilhação constante que são impostas àqueles que não tiveram a oportunidade de aprender a ler e escrever. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2018, havia 11,3 milhões de pessoas analfabetas com 15 anos ou mais de idade no Brasil. Portanto, a taxa do analfabetismo absoluto em nosso país é de 6,8%. Quando a análise, de acordo com o IBGE, é feita por cor ou raça, em 2018, 3,9% das pessoas de 15 anos ou mais de cor branca eram analfabetas. Esse percentual se amplia para 9,1% entre pessoas de cor preta ou parda. Sem dúvida, esse significativo contingente populacional foi silenciado ao longo do tempo e tudo lhe foi negado: oportunidades educacionais, empregabilidade, acesso aos bens culturais produzidos em nossa sociedade e, em suma, sua dignidade foi desrespeitada e seus direitos fundamentais foram vilipendiados. Existem ainda outros dados muitos preocupantes que apontam para a existência de 38 milhões de analfabetos funcionais no Brasil. A educação é uma dimensão essencial do viver humano e a poesia crítica enaltece o aprendizado construído a partir da leitura do mundo e das experiências significativas sem renunciar ao letramento e ao direito de acesso à educação. O analfabetismo absoluto ou funcional compromete o futuro do nosso país.
Brasil 060 News – Fica muito evidente no seu livro a sua preocupação com as crianças abandonadas e com os moradores de rua. É verdade que o poema “Extermínio de meninos” foi escrito logo após a Chacina da Candelária?
Antonio Artequilino – O deplorável e hediondo crime conhecido como “Chacina da Candelária” aconteceu há 27 anos, mais precisamente no dia 23 de julho de 1993. De fato, no dia seguinte à chacina, escrevi o poema “Extermínio de meninos”. Lembro-me das notícias veiculadas no Brasil e no exterior sobre a ação de policiais militares que faziam parte de um grupo de extermínio, os quais foram até a região da Igreja da Candelária no Rio de Janeiro e atiraram em diversas pessoas, matando oito jovens. Mais adiante realizei uma pesquisa e constatei que a maioria dos meninos mortos na Chacina da Candelária se enquadravam no perfil de garotos negros e moradores de rua. Escrevi diversos poemas para denunciar o abandono de menores, a indiferença da sociedade e a incompetência das autoridades para lidar com uma questão tão sensível e dramática. Destaco aqui o poema “Pobreza” para enfatizar o abandono cotidiano de nossas crianças que além da fome, do frio, da carência de afetividade e da falta de assistência ainda sofrem com a brutalidade daqueles que as estigmatizam nos campos da hipocrisia, do cinismo, da apatia, do silenciamento e da marginalidade:
Vi uma cena estarrecedora…
Uma criança pedia esmola
Ao mesmo tempo
Em que cheirava cola
No meio de uma multidão
Acusadora!
Diante do meu embaraço,
Um cidadão bradou:
Por este moleque aí,
Seu tempo não desperdice…
Além de ser um marginal sujo,
Vem da pobreza e é preto!
Tamanha demonstração
De puro ódio,
Deixou-me triste!
A intolerância
E o preconceito de toda a sorte
São males que persistem
Em dividir os homens,
Tornando-os loucos!
Compreendi com pesar
Que muito pior
Do que a pobreza material
É a miserabilidade
De espírito
Que transforma
A vida de muitos
Num abismo
Constituído
Pelo nada.
Brasil 060 News – Sem renunciar à crítica e expressando uma vigorosa capacidade de indignação, sua poesia também enaltece o poder da ternura, do amor e do acolhimento. Você poderia falar um pouco sobre isso? Fique à vontade para nos oferecer um exemplo poético.
Antonio Artequilino – A realidade, não raras vezes, nos impõe o dissabor de conviver com pessoas problemáticas no campo das relações conflitivas, agressivas e desrespeitosas na internet, no trânsito das grandes cidades, no local de trabalho, na rua, na escola e até mesmo no próprio lar. A poesia que cultivo defende o amor como única e possível via para encontrarmos a felicidade e conquistarmos o bem comum. Refiro-me ao amor altruísta que rejeita as futilidades de uma sociedade que faz do consumo a sua razão de viver. O “ter” deve ceder lugar para o “ser” na sua mais bonita e elevada manifestação, a qual apresenta nas formas do perdão, justiça, afeto, confiança, diálogo, humildade, carinho, ternura, paciência, brandura, esperança e amabilidade. Precisamos lutar contra todas as formas de opressão e devemos acolher nossos semelhantes. Ora, penso que as crianças merecem todo o nosso amor. Assim, ofereço como exemplo o poema “Linda criança triste”:
“Inclino-me
Suavemente
Para te beijar
E percebo,
Minha linda criança,
Que a vil
E cruel desesperança
Tomou conta
Do brilho do teu olhar!
Onde estão teus pais?
Por que te abandonaram?
Os temores te sufocaram…
Quero te segurar
Em meus braços,
Desejo te proteger
Cada vez mais
Nos mananciais
De uma ternura divina…
Sublime criança pequenina,
Não te deixarei jamais!”.
Brasil 060 News – Com uma versatilidade admirável os seus poemas tratam de problemas graves, tais como a violência contra a mulher, o genocídio indígena, a relevância da educação, o voto consciente, a miséria, a desigualdade, o racismo, a corrupção, a democracia, a proteção dos animais, o amor, o idealismo, a morte, a vida, a esperança e tantos outros temas. Contudo, existe uma crítica bastante peculiar no poema “Economia e política”, senão vejamos:
“O ser humano
É maior que a economia?
– Quanta contradição!
O sistema financeiro
Prioriza o dinheiro
Toda hora,
Todo dia,
O ano inteiro!
O ser humano
É maior que a política?
– Que dilema!
O sistema político partidário
Obscurece a democracia,
Privilegia um esquema
Do qual poucos, bem poucos,
Beneficiam-se amplamente!
O ser humano admite
Um sistema político
Subordinado e submisso
À insanidade mercantil
Do economicista mercado
Que prega a verdade única
Da impossibilidade de termos
Um novo modelo de sociedade”.
O que o motiva a tecer a crítica contida no poema “Economia e política” e o que humanidade pode esperar do capitalismo?
Antonio Artequilino – A interação entre igualdade econômica e igualdade política na teoria democrática requer o equilíbrio. No entanto, a realidade comprova que a desigualdade econômica promove a desigualdade política. Na sociedade brasileira alguns grupos acumulam em suas mãos o poder político e econômico e fazem com que a democracia seja permanentemente ameaçada. Fui bancário por 25 anos e posso falar do nosso desequilíbrio democrático mencionando as elites financeiras brasileiras que se colocam acima dos interesses nacionais há décadas e subordinam os governos de diversas matizes ideológicas à sua ânsia de acumulação em larga escala do lucro. Enquanto o poder político sucumbir diante do poderio econômico-financeiro o ser humano será menor do que a economia e o dinheiro continuará subjugando a dignidade humana. Quanto à segunda questão de sua pergunta, gostaria de ponderar que o comunismo pereceu por sua incapacidade de respeitar o contraditório e de acolher o pensamento divergente. Contrariando as previsões do grande filósofo, sociólogo, historiador e economista Karl Marx, a derrocada da utopia comunista se deu pela imposição de ditaduras cruéis e da loucura genocida de tiranos que almejaram se perpetuar no poder sob o pretexto de uma igualdade que nunca foi alcançada. Não obstante, devemos reconhecer também que o capitalismo fracassou por fazer do mundo um lugar injusto, desigual, cheio de disparidades e fadado ao desaparecimento. Do ponto de vista biológico, o capitalismo poderá exaurir completamente o planeta Terra em menos de dois séculos se forem mantidos os atuais níveis de exploração dos recursos naturais, de destruição das florestas e de poluição do ar, da água e dos alimentos. No campo social se intensifica a superexploração dos trabalhadores por meio da extração crescente de mais-valia ao mesmo tempo em que aumenta a precarização do trabalho e o desemprego. Tudo isso acontece num cenário de grande concentração de riquezas e de ampliação da miséria. O neoliberalismo defende a privatização das empresas estatais, as reformas constitucionais que visam a redução dos impostos sobre os capitais privados, a desregulamentação da economia, a flexibilização dos direitos trabalhistas e a redução dos investimentos estatais em políticas públicas básicas, sem levar em consideração a realidade dos desvalidos submetidos à pobreza, fome, desemprego, mendicância, criminalidade e absurda falta de acesso a serviços essenciais como saúde e educação. O economista francês Thomas Piketty em sua obra “O capital no século XXI” afirma que a dinâmica do capitalismo agrava cada vez mais o problema da desigualdade no mundo. Nesse sentido, se o socialismo fracassou e se não é possível sustentar o capitalismo e suas mazelas, podemos concluir que o mundo precisa de um sistema econômico e social que se configure numa terceira via alternativa baseada em princípios democráticos, na cooperação e na solidariedade com equidade. Insisto no fato de que a realidade comprova o fracasso do capitalismo como caminho viável para a humanidade. Dados do relatório global da organização não governamental Oxfam de 2018, informam que as 26 pessoas mais ricas do mundo detêm a mesma riqueza dos 3,8 bilhões mais pobres, que correspondem à metade da população do planeta. Portanto, o capitalismo predador baseado no individualismo, na exploração irracional dos recursos naturais, na concentração de riqueza para poucos e na distribuição da miséria para a maioria só nos oferece uma perspectiva distópica de dor, destruição e extermínio. Ora, se a distopia representa a antítese da utopia, precisamos buscar o inédito que ainda poderá vir. Nossa utopia em torno da construção de um mundo melhor e de uma humanidade mais justa e fraterna não pode morrer. Como afirmou o grande Fernando Pessoa “tenho em mim todos os sonhos do mundo”. Portanto, acredito piamente que devemos lutar em favor das mudanças necessárias e pela realização dos sonhos impossíveis com ética, amor, idealismo e lucidez. A vida requer a constituição de sentido para as utopias que cultivamos com esperança nas terras do coração.
Brasil 060 News – Qual é a importância da leitura da poesia crítica nos dias de hoje?
Antonio Artequilino – Entendo humildemente que a disseminação de uma poética de cunho crítico e social pode estimular leituras e reflexões profícuas nesses tempos preocupantes de hedonismo e alienação nos quais a formação de consciências críticas se tornou um imperativo civilizatório. Creio que a poesia, além do seu relevante vínculo com as sentimentalidades, não se esgota nas suas dimensões histórica, política, social, econômica e cultural, mas envolve também aspectos relacionados às grandes aspirações do espírito humano com significativos reflexos nas questões morais, materiais e existenciais presentes no cotidiano do nosso povo. A poesia abolicionista foi um exemplo digno da resistência, dentro do campo literário, a um sistema escravocrata repleto de horrores que durou mais de três séculos e meio no Brasil. Sem dúvida, as relações escravistas foram bastante complexas e deixaram inúmeras sequelas políticas, econômicas, sociais e culturais, sendo que o racismo estrutural precisa ser urgentemente compreendido e combatido na atualidade. Além disso, os desafios relacionados à pobreza extrema, ao analfabetismo, ao desemprego, à falta de serviços públicos essenciais como saúde, educação, saneamento básico, moradia e segurança trazem uma angústia imensa e ensejam o envolvimento de todos na discussão de alternativas por meio de um debate inclusivo e democrático que pode ser enriquecido com os versos críticos de uma poética de resistência.
Brasil 060 News – Professor, fale um pouco sobre as questões que envolvem a herança da escravidão no Brasil.
Antonio Artequilino – Paradoxalmente, o primeiro país a banir o escravismo foi Portugal, no ano de 1761. No entanto, o Marquês de Pombal direcionou o decreto apenas para Portugal Continental e suas colônias na Índia. No Brasil, lastimavelmente, a escravidão se manteve até a assinatura da Lei Áurea em 1888. A herança da escravidão é heterogênea e afeta a vida nacional nos campos urbanístico, social, econômico, político e, como não poderia deixar de ser, nos aspectos formadores da cultura brasileira. É absolutamente inegável o fato de que a nossa identidade nacional foi construída a partir da multiculturalidade étnica, das diferentes formas de linguagem que se entrecruzaram historicamente, da religiosidade, do folclore, da culinária, da memória, do imaginário popular, da musicalidade, da dança e das demais expressões artísticas-culturais. Nesse quadro, os escravos negros tiveram um decisivo papel na composição identitária brasileira. Por outro lado, a presença determinante do trabalho negro nos principais ciclos produtivos da história brasileira (açúcar, ouro, pecuária e café) enriqueceu ainda mais as elites dominantes escravagistas e conservadoras. A exploração econômica e o funcionamento da colônia basearam-se no trabalho escravo com vileza, crueldade e grandes sacrifícios humanos. Vergonhosamente, o Brasil Imperial não aproveitou a oportunidade histórica de abolir a escravidão a partir do “grito de independência” de 1822 ou mesmo da promulgação da primeira Constituição Brasileira em 1824, também denominada Constituição Política do Império do Brasil, a qual só foi substituída no ano de 1891 pela constituição republicana que, por sua vez, ignorou as condições de miséria e de apartação dos escravos recém libertados. O Império brasileiro, antes da Lei Áurea, apenas sancionou leis sob pressão internacional como a Lei Eusébio de Queirós, de 1850, que extinguiu o tráfico negreiro transatlântico, a Lei do Ventre Livre, de 1871, que impediu os filhos nascidos de escravas de serem também escravos, e a Lei dos Sexagenários, de 1885, que libertava todos os escravos com mais de sessenta anos de idade. A história do Brasil explica cabalmente a omissão do estado monárquico e do estado republicano que, cedendo aos interesses econômicos das elites, condenaram os escravos e os seus descendentes à perpetuidade das mazelas históricas que poderiam ter sido reparadas há muito tempo. Portanto, atualmente, a dívida do estado brasileiro com os afrodescendentes é impagável em todos os sentidos, mas deve ser minimamente atenuada com ações afirmativas de caráter amplo na busca por igualdade racial. Uma marca que avilta a dignidade nacional é a segregação étnico-racial revelada pelos efeitos do preconceito e da discriminação. Na minha opinião, os países que se dizem honrados e democráticos deveriam colocar em debate o tema da reparação histórica ao povo negro. No Brasil, ao contrário do que deveria acontecer, percebe-se o crescente avanço de grupos reacionários, agressivos e fanatizados que se declaram contrários ao estabelecimento de políticas reparadoras baseadas em quesitos raciais. Argumentam com veemente reducionismo que a exclusão social no Brasil não é determinada pela cor da pele, mas pela pobreza, ao passo que as estatísticas provam que a realidade é bem mais complexa. Além disso, defendem com pouquíssimo conhecimento de causa aquilo que inadvertidamente chamam de meritocracia. Por exemplo, o Atlas da Violência apurou que 75% das vítimas de homicídio no Brasil são negras. E o que dizer do acesso à educação, saúde, postos de trabalho, remuneração justa, moradia, saneamento básico e a outros direitos essenciais? Todos os indicadores comprovam de forma cabal que a população negra tem menos oportunidades do que a população branca em todas as esferas da sociedade brasileira. O racismo estrutural está presente no Brasil contemporâneo e resulta de um percurso sócio-histórico caracterizado pela exploração da mão-de-obra escrava, incluindo todo o legado de dominação, de horror, de sofrimento, de exploração e de arbitrariedades da escravidão. A concentração do poder político e econômico nas mãos de uma elite irresponsável e inconseqüente ao longo da nossa história impediu o processo de inclusão dos afrodescendentes. O Brasil nunca foi uma democracia racial. O racismo estrutural precisa ser reconhecido e combatido pelas instituições democráticas para que prevaleça a cidadania e o bem comum.
Brasil 060 News – Você mencionou a meritocracia. O que há por trás desse conceito?
Antonio Artequilino – Numa sociedade tão injusta e desigual como a nossa é uma grande temeridade defender o predomínio daqueles que, supostamente, possuem mais méritos que os demais. Teoricamente é algo que parece razoável à primeira vista porque parte do princípio de se dar primazia aos que detém maior capacidade produtiva e que se mostram exemplarmente dedicados ou mais preparados intelectualmente em comparação com aqueles que possuem “poucos méritos”. Atualmente o termo meritocracia descreve em diversos contextos a possibilidade de ascensão, projeção, promoção ou crescimento profissional por meio do reconhecimento das competências e do esforço individual. Contudo, esclareço que na sua gênese a palavra tinha uma conotação oposta pelo fato de que foi utilizada de forma pejorativa pelo escritor inglês Michael Young em 1958, no livro “The Rise of Meritocracy” (A ascensão da meritocracia). Na sua obra Young apresenta uma distopia ao criar uma sociedade futurística onde todas as pessoas seriam avaliadas somente por seus méritos. Todavia, ao invés de favorecer os mais débeis, a meritocracia acaba por aumentar o abismo existente entre a elite e a população. Portanto, o conceito de meritocracia só pode ser legitimado quando todos os indivíduos de uma sociedade puderem usufruir das mesmas condições sociais, econômicas e de terem as mesmas oportunidades. O Brasil é um país injusto, repleto de grandes disparidades regionais e cheio de desigualdades sociais. É necessário garantir chances iguais para todos os cidadãos. Não faz sentido acusar os desfavorecidos de inércia, preguiça ou vitimismo. No Brasil atual acontece uma hedionda inversão de valores promovida por grupos que empregam discursos de ódio, de exclusão e de confronto permanente. Devemos nos opor à intolerância daqueles que lutam pela imposição do discurso único. São grupos organizados que se autoproclamam patriotas, mas que na verdade são reacionários e antidemocráticos.
Brasil 060 News – Você se identifica com alguma corrente político-partidária?
Antonio Artequilino – Nunca tive filiação partidária e não sou filiado a nenhum partido político. Tenho clareza de que um dos nossos grandes imperativos consiste na realização de uma ampla reforma política. O modelo de democracia representativa sofre grandes deturpações no Brasil em razão da baixa escolaridade, da ignorância, da desinformação e da ausência de consciência política da maior parte do eleitorado. O direito de escolher quem vai ocupar determinado cargo eletivo poderia fazer do voto um poderoso instrumento de mudança se o eleitor tivesse clareza da sua própria condição de vida. Por exemplo, o que pode esperar um trabalhador desempregado ao votar num grande empresário? Apenas a defesa dos interesses dos empregadores e do capital. E o pequeno agricultor que ajuda a eleger os representantes dos latifundiários? Portanto, a falta de legitimidade advém da concentração do poder nas mãos de políticos profissionais que defendem pautas distintas daquelas que foram reivindicadas pelo seu próprio eleitorado, majoritariamente desinformado, acrítico, facilmente enganado por falsas promessas, imprudente e desavisado. Assim, prevalecem no Brasil os interesses escusos dos grupos que se associam à maioria dos políticos em detrimento das causas populares. Precisamos de uma reforma política que renove o sistema eleitoral, modifique a estrutura partidária, estabeleça o voto distrital, rediscuta a questão dos gastos de campanha, a participação feminina, a reeleição, a proporcionalidade, a fidelidade partidária, o tempo de duração do mandato, as doações de campanha e o voto facultativo. Entretanto, não devemos nos enganar: o tão necessário amadurecimento político do nosso povo depende fundamentalmente da educação.
Brasil 060 News – Por que a educação é tão importante para o amadurecimento político?
Antonio Artequilino – Sem educação é impossível almejar o mínimo de coerência na chamada democracia representativa. A falta de esclarecimento, a ignorância, o desconhecimento, a falta de autonomia de pensamento, a impossibilidade de assumir um posicionamento crítico diante da realidade, tudo isso pode ser atribuído à falta de oportunidades educacionais e ao fenômeno do analfabetismo funcional que atinge milhões de brasileiros. Como agravante, existe também um esforço deliberado por parte de grupos criminosos que disseminam notícias falsas (Fake News) com a finalidade de promover a alienação, a cooptação e a fanatização dos incautos por meio da repetição sistematizada de mentiras e da defesa persistente e atabalhoada de teorias conspiratórias na mídia e nas redes sociais. Na minha modesta opinião, as instituições democráticas devem se contrapor à escuridão daqueles que imploram pelo autoritarismo e protestam em favor da imposição do pensamento único. Como afirmei inicialmente, não tenho nenhuma filiação partidária. Na condição de cidadão, historiador, educador, analista do discurso e consultor pedagógico considero o autoritarismo, em todas as suas formas e manifestações, quer seja do espectro político de direita ou de esquerda, uma repulsiva excrescência. Os que defendem o autoritarismo, a tirania e o retorno da ditadura militar são irresponsáveis, inconsequentes e cometem crimes contra o estado democrático de direito.
Brasil 060 News – Professor Antonio Artequilino, você mencionou a fanatização. Como isso se dá no Brasil atual e quais são as consequências desse processo?
Antonio Artequilino – O fenômeno do fanatismo não é recente e existe desde os primórdios da civilização humana. São denominados “fanáticos” todos os que assumem posições extremistas, exaltadas, irracionais, intolerantes, exageradas, demasiadamente fervorosas e acríticas. É comum encontrarmos pessoas que manifestam formas de fanatismo religioso, político e esportivo, apesar de que a certeza incontestável do fanático pode envolver todas as atividades humanas como cinema, literatura, carros, música e tantas outras. Acredito que o perigo maior do fanatismo consiste nas suas formas de expressão, tais como a violência, a euforia, o exagero, o apego descomedido, além da inarredável crença em torno de uma “verdade” única, dogmática e absoluta. O fanatismo distorce questões elementares da coerência que envolve discurso e prática. Parece-me interessante lembrar que a obra “Tratado sobre a tolerância” de Voltaire critica a assolação do fanatismo, particularmente o religioso, durante o curso da história. De fato, o fanatismo religioso fez com que cristãos se fizessem mutuamente em pedaços nos inúmeros conflitos que envolveram católicos e protestantes. Não podemos esquecer as Cruzadas que colocaram cristão e muçulmanos em sucessivas guerras pelo controle da Terra Santa. Atualmente, tornou-se comum no Brasil ver pastores evangélicos radicais incitarem o ódio em programas de rádio e televisão contra supostos “inimigos”, os quais são invariavelmente acusados de serem comunistas. Em todos os exemplos citados observamos o paradoxo da total inobservância dos ensinamentos de Jesus Cristo. Ora, o divino mestre nos ensinou a amar incondicionalmente, por meio do perdão, da caridade e do humilde desapego aos “tesouros” materiais do mundo. Infelizmente, os fiéis fanatizados são facilmente engodados por discursos contraditórios e confusos porque o fanatismo promove uma cegueira difícil de ser percebida por aqueles que renunciaram ao mínimo de bom senso, perspicácia e criticidade. No contexto político-partidário o fanatismo contribui em enorme medida para acentuar a polarização pelo fato de que um extremista vê como inimigo todos os que estão no outro extremo. Vale a pena lembrar que o grande escritor italiano Umberto Eco se dedicou ao tema da construção do inimigo no seu livro “O Cemitério de Praga”, e chegou a afirmar que “para manter o povo sob controle é necessário inventar constantemente inimigos, e pintá-los de maneira a inspirarem medo e repugnância”. No Brasil atual temos o desafio de superar a polarização que se intensifica cada vez mais, impossibilitando o diálogo entre contrários e promovendo inimizades que envolvem amigos, vizinhos, colegas de trabalho e familiares. A origem da polarização política no Brasil no seu aspecto mais ostensivo se deu com a separação entre petismo e antipetismo, mas continua ganhando outras configurações como a divisão entre conservadores e progressistas, “fascistas” e “comunistas”, apoiadores da democracia e defensores de uma intervenção militar. Deveras, são muitas as formulações que colocam as pessoas em diferentes polos. Inspiram grande apreensão a disseminação das teorias conspiratórias, das fake news e dos medíocres embates ideológicos na sociedade brasileira.
Brasil 060 News – Professor, o que mais o preocupa na ausência de diálogo e no acirramento causado pela polarização?
Antonio Artequilino – O enraizamento de um espectro polarizado ameaça enormemente a democracia. A impossibilidade da discussão civilizada e racional entre posições contrárias resulta da contínua ocorrência de manifestações agressivas, dos repetidos atos de intolerância, das manifestações individuais e coletivas de ódio que promovem o desrespeito, a difamação e o linchamento moral do “inimigo”. Ao contrário do que estabelece o senso comum, os registros históricos mostram que o povo brasileiro não é meramente pacífico, pacato, cordial e ordeiro. Trata-se de um reducionismo que defende a ideia simplória do conformismo e da resignação de um povo que viveu e ainda vive num país que foi forjado na exploração da mão-de-obra escrava, no genocídio dos índios nativos e no inaceitável amordaçamento das classes subalternas. Devo lembrar que no período Regencial, mais precisamente entre os anos de 1831 a 1840), surgiram vários movimentos populares insurgentes como a Cabanagem, a Sabinada, a Guerra dos Farrapos e a Balaiada. Quanto ao período republicano, foram várias as rupturas democráticas causadas por forças que almejavam o poder a qualquer custo para fazer prevalecer os interesses das elites dominantes brasileiras. A polarização política provoca o acirramento dos conflitos ideológicos, principalmente nas redes sociais como Facebook, WhatsApp e Youtube. Tornou-se comum no Brasil o aviltamento causado pelos ataques agressivos. Os discursos de ódio são caracterizados pela incitação à violência, pelas apologias ao racismo, intolerância ideológica e xenofobias. Em outras palavras, ou superamos a polarização com a valorização do espírito democrático, da tolerância e do diálogo ou corremos o risco de comprometer a unidade nacional que deve ser sustentada por um projeto de nação justo, inclusivo e voltado para o bem comum.
Brasil 060 News – Quais são os efeitos visíveis mais danosos da exploração da ignorância, dos desvios conceituais, das ofensas constantes e da guerra de narrativas no Brasil?
Antonio Artequilino – A polarização parece impulsionar o fanatismo daqueles que empregam raciocínios fundamentalistas os quais julgávamos terem sido superados há muito tempo. Por exemplo, a atual crença na “Terra plana” ou “terraplanismo” por parte de muitas pessoas deixaria o navegante português Fernão Magalhães horrorizado, considerando que ele circum-navegou o planeta Terra em 1519. E o que dizer da insanidade do “nazismo de esquerda” defendido equivocadamente por um Ministro das Relações Exteriores? Tamanha sandice certamente causa constrangimento ao Instituto Rio Branco, pois na Alemanha e no resto do mundo sabe-se que o nazismo alemão se contrapôs exacerbadamente ao socialismo marxista desde a sua origem. O Nazismo era declaradamente antissemita, ultranacionalista e anticomunista. Hitler liderava uma corrente política de extrema direita que no dia 15 de março de 1933, proibiu as atividades do Partido Comunista Alemão e determinou que os mandatos dos seus deputados fossem sumariamente cassados. Em seguida seus dirigentes foram presos, torturados, mortos ou enviados para campos de concentração. Por tudo isso, devo dizer que é deplorável o crescente emprego vulgarizado anacrônico, desvirtuado e indevido de termos tais como “comunismo”, “fascismo”, “holocausto”, “democracia”, “tortura”, “direitos humanos” e “patriotismo” por pessoas que não sabem sequer o que estão dizendo. Confesso que fico assustado com tanta má fé, despreparo e ignorância. Como entender o questionamento estúpido do presidente da Fundação Palmares em torno da figura de Zumbi? Trata-se de um símbolo na luta e resistência contra a escravidão de povos de origem africana no Brasil. Os que rejeitam o processo de ampliação e valorização da Consciência Negra tentam desqualificar Zumbi com argumentos que não podem ser comprovados documentalmente por meio de registros históricos. Zumbi simboliza a luta pela emancipação, pela liberdade e pela defesa dos direitos da população afrodescendente. Sabemos que a figura de Dom Pedro I simboliza a independência do Brasil por meio do “grito do Ipiranga”, e entendo que é justo. Contudo, convém destacar que o referido imperador não foi questionado pelos pretensos revisionistas em razão do seu comportamento social impulsivo e descomedido, ou seja, Dom Pedro I se envolveu em inúmeros escândalos, mas ninguém ousou propor o fim das comemorações do dia 7 de setembro. Outrossim, sabemos que Tiradentes não lutou por um processo amplo de libertação de todo o território colonial do jugo português, mas não se vê ninguém vociferando em favor da anulação do seu título de Patrono da nação brasileira. Então, por que questionar Zumbi dos Palmares? Devo esclarecer que o símbolo se projeta numa dimensão imensuravelmente maior do que a figura humana por ele representada. Ademais, foi muito deprimente ouvir de um ex-Ministro da Educação e do atual presidente do Brasil ofensas cruéis ao educador, pedagogo e filósofo Paulo Freire, o qual é considerado no mundo inteiro um dos mais notáveis pensadores brasileiros da história. O título de Patrono da educação brasileira é coerente com os seus feitos. Paulo Freire tornou-se o brasileiro mais homenageado de todos os tempos ao receber 29 títulos de “Doutor Honoris Causa” por universidades da Europa e da América, incluindo centenas de outras menções e prêmios. Faço questão de lembrar que a obra “Pedagogia do Oprimido” está entre os 100 livros mais requisitados em universidades de língua inglesa pelo mundo. Além disso, Paulo Freire é o terceiro pensador mais citado do planeta em universidades da área de Ciências Humanas, fato que comprova o valor do seu legado que, mesmo sendo unânime pelo mundo é questionado pelo obscurantismo que ameaça a qualidade do debate público sobre a educação no Brasil. A cegueira ideológica causa repulsa, impede o diálogo e desqualifica o nível de discussão. O debate público é esvaziado e se torna nocivo em razão do maniqueísmo que defende os posicionamentos mais esdrúxulos, inconsequentes e desrespeitosos. Como se não bastassem todas as tragédias que mencionei, ainda testemunhamos as sucessivas abordagens negacionistas, revisionistas e anticientíficas que são utilizadas para estigmatizar a imprensa livre, negar o aquecimento global, menosprezar os direitos humanos, defender a destruição do meio-ambiente, bem como para esconder os crimes cometidos pela ditadura militar instalada no Brasil em 1964. Como justificar os desacertos da desastrosa condução governamental da maior crise sanitária dos últimos cem anos? Chegamos ao ponto de ver políticos prescrevendo e recomendando medicamentos contra o coronavírus ao arrepio do resultado de pesquisas científicas. Acho que o tão propagado “novo normal” decorrente das mudanças de comportamento causadas pela pandemia da Covid-19 começaria melhor se as pessoas oferecessem um olhar mais crítico sobre o anormal e lamentável período em que vivemos atualmente. Trata-se de uma conturbada crise civilizatória caracterizada por grandes retrocessos políticos, econômicos, culturais e sociais. Não podemos nos calar diante das ameaças ao pensamento crítico, do crescente anti-intelectualismo e da obscuridade beligerante que insiste na promoção do caos, da desinformação e do atraso.
Brasil 060 News – Professor, pelo que entendi, na sua opinião o Dia da Consciência Negra deve ser mantido. É isso mesmo?
Antonio Artequilino – Sem dúvida nenhuma. Alguns autores e formadores leigos de opinião nas redes sociais declaram-se adeptos de um revisionismo que não é nada histórico e, mesmo assim, querem destruir a figura de Zumbi dos Palmares. Além disso, fica evidente que foram contaminados pelo ódio ideológico que propõe a intolerância e o revanchismo. O Dia da Consciência Negra é celebrado em 20 de novembro, data da morte de Zumbi dos Palmares, símbolo de resistência do povo negro na história brasileira. Para responder aos que acusam Zumbi de ter tido escravos, pode-se dizer que o mais provável é que o regime escravista do quilombo fosse semelhante ao já existente na África, onde cativos de guerra eram forçados a trabalhar a terra por um determinado tempo como punição pela derrota. Palmares havia surgido no final do século XVI, quando os primeiros negros ali se refugiaram e chegou a ter uma população de trinta mil pessoas. Com o intuito de destruir o quilombo, o poder colonial organizou dezesseis expedições oficiais das quais quinze fracassaram, ou seja, durante os anos de 1680 a 1691, Zumbi conseguiu derrotar todas as expedições enviadas contra o Quilombo dos Palmares. Contudo, no dia 20 de novembro de 1695, depois de ser traído por um companheiro chamado Antonio Soares, Zumbi foi localizado e preso pelas tropas portuguesas. Em seguida Zumbi foi morto, esquartejado e teve a sua cabeça exposta em praça pública na cidade de Olinda. O motivo de tamanha violência residia no fato de que nas senzalas o quilombo dos Palmares era sinônimo de liberdade e de “Terra Prometida”, ao passo que para muitos Zumbi era considerado imortal. Nesse sentido, é absolutamente anacrônico postular que Zumbi pudesse defender os mesmos valores democráticos de liberdade e igualdade que defendemos hoje. Ele era um homem negro que se opunha à sociedade escravocrata da época a qual era extremamente intolerante com os cativos e mantinha uma mentalidade colonialista. Zumbi dos Palmares tinha como referência a busca pelos costumes e crenças da mãe África, razão pela qual não pode sofrer na atualidade o julgamento de leigos que desconhecem as especificidades dos tempos históricos. Com toda a justiça Zumbi tornou-se um grande símbolo de luta por liderar a resistência contra a escravidão imposta pelos brancos em um sistema baseado na exploração humana, no tráfico ultramarino de pessoas e na ganância desmedida de uma elite agrária que fez do cativeiro a sua fonte de enriquecimento e de obtenção de status social. Vale acrescentar que a lei no 12.519, de 10 de novembro de 2011, instituiu o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, celebrado em 20 de novembro. Portanto, tentar desqualificar os valores que Zumbi representa ou desvalorizar o Dia Nacional da Consciência Negra é atentar contra a nossa história e conspirar contra a legalidade democraticamente formulada.
Brasil 060 News – Professor, é fascinante ouvi-lo abordar a história do Brasil com tanta clareza. O estudo da história pode explicar o que se passa hoje em dia no nosso país?
Antonio Artequilino – O passado nos ajuda a explicar e compreender os desafios do tempo presente. Lamentavelmente, a história do Brasil nos mostra uma sequência de absurdos e de equívocos deploráveis. Começo por reconhecer que não podíamos esperar por grandes avanços sociais no período colonial, mas a verdade é que tanto o estado monárquico quanto o estado republicano se curvaram diante da perversidade das elites que aqui se estabeleceram ao longo do tempo. Vivemos num país construído sob o manto vergonhoso da escravidão negra e da grande propriedade fundiária monocultora. A aristocracia rural se contrapôs historicamente ao imperativo da Reforma Agrária e impediu que tivéssemos avanços sociais. Por exemplo, na Assembleia Constituinte de 1823, José Bonifácio de Andrada e Silva, um estadista que foi eleito deputado constituinte, levou ao Parlamento emendas importantíssimas como o fim da escravidão, a concessão de pequenas faixas de terras para os negros libertos, a instituição de uma reforma agrária, a preservação das matas e rios brasileiros, a obrigação de conservar uma parte das propriedades rurais com florestas nativas, o direito de voto aos analfabetos e a mudança da capital do país para o Planalto Central. Bonifácio acreditava num projeto de nação capaz de superar os problemas estruturais herdados do passado colonial. Infelizmente, pressionado pela aristocracia rural escravista o Imperador Dom Pedro I dissolveu a Assembleia Constituinte de 1823. José Bonifácio protestou, foi preso e exilado, só retornando ao país anos depois. Não posso esquecer de citar a lei 601, de 18 de setembro de 1850, popularmente conhecida como “Lei de Terras” a qual teve pouca consequência prática na regulamentação da questão fundiária, mas criou sérias dificuldades para o acesso à terra pelas camadas mais pobres da população e pelos imigrantes, que se viram obrigados a trabalhar nas grandes fazendas de café. A referida lei elevou o preço da terra e exigiu o pagamento à vista e em dinheiro no ato da compra. Contribuiu para manter a concentração fundiária que marca a realidade brasileira e provoca conflitos agrários até os dias atuais. A educação de qualidade sempre foi privilégio de poucos e as oportunidades se restringiram de forma avassaladora aos mais pobres. Além disso, as oscilações entre populismo e autoritarismo foram muito prejudiciais ao desenvolvimento do nosso país que sempre implorou por reformas estruturais. É impossível não lembrar das Reformas de Base propostas pelo presidente João Goulart e que incluíam os setores educacional, fiscal, político e agrário. Se tais reformas tivessem sido implantadas com êxito os rumos de desenvolvimento do Brasil poderiam ter mudado de forma significativa. O golpe militar de 1964, foi um grande retrocesso e atendeu aos interesses das elites que mais uma vez se viram ameaçadas e reagiram com a imposição da violência. De forma lastimável, todos os governos democráticos que sucederam a infame ditadura após o ano de 1985, sucumbiram à pressão dos poderosos e não ousaram realizar de forma efetiva nenhuma das reformas necessárias – Estado, Agrária, Tributária e Política. Atualmente no Brasil, o percentual ínfimo de 1% da parcela mais rica da população concentra 28,3% da renda do país e os 10% mais ricos concentram 41,9% da renda total. Esses percentuais são ultrajantes e nos colocam em segundo lugar no mundo em má distribuição de renda. Temos, portanto, uma elite inconsequente que concentra cada vez mais o poder político e econômico na medida em que insiste em manobrar uma colossal massa de deserdados. Assim como já afirmei os governos dos últimos 35 anos fracassaram pela total ausência das reformas necessárias e os avanços sociais conquistados caíram por terra pela falta de alicerces seguros. Por exemplo, precisávamos de políticas consistentes de distribuição de renda e não tão somente da ampliação da oferta de crédito, não foram feitos os investimentos adequados em infraestrutura, metade da população continua sem saneamento básico e o analfabetismo não foi erradicado. Em 35 anos de democracia o voto foi tratado com negligência e os políticos profissionais cuidaram para manter seus vícios e privilégios. Vale salientar que a malfadada reforma Trabalhista do governo Temer e a repulsiva reforma Previdenciária do governo Bolsonaro foram verdadeiros escárnios à condição de penúria do nosso povo porque sacrificaram mais uma vez os trabalhadores em geral e subtraíram direitos das parcelas mais pobres da nossa população. Poderíamos falar ainda sobre aspectos da formação do estado brasileiro, da política do café com leite, da controversa figura de Getúlio Vargas e de tantos outros temas importantes, mas preciso reconhecer que o tempo de entrevista é exíguo e que o espaço para sua publicação possui limites.
Brasil 060 News – E o que dizer do Brasil de hoje?
Antonio Artequilino – Não é nenhum exagero afirmar que vivemos um dos períodos mais dramáticos da história política brasileira. Da mesma forma, entendo humildemente que não podemos renunciar ao dever de criticar o que não está indo bem no Brasil de hoje, apesar da insana polarização que se estabeleceu em nossa sociedade. O atual patamar de desigualdade social e de subdesenvolvimento do Brasil corrobora o entendimento de que, mesmo reconhecendo percalços, avanços e recuos, todos os governos anteriores fracassaram. No entanto, muitos tentam justificar a inércia do momento presente resgatando incessantemente os erros de governos que antecederam o atual. Não sou dono da verdade e posiciono-me com muita modéstia ao afirmar que não é possível fazer uma boa avaliação do governo Bolsonaro neste momento. Os apoiadores do governo dizem que não houve tempo suficiente quando já se passaram mais de um ano e meio. Se avaliarmos apenas o ano de 2019, poderemos concluir que o primeiro ano de um governo se constitui no espaço decisivo para criar medidas que estimulem a produção e o consumo, para melhorar o ambiente de negócios, para gerar a confiança dos setores produtivos no governo e, consequentemente, possibilitar a geração de emprego e renda, mas os avanços obtidos pelo governo atual foram pífios. Torna-se oportuno relembrar que Bolsonaro foi eleito num contexto de grande apatia política, de revanchismo ideológico e de disseminação massiva de notícias falsas. Os discursos de ódio incentivaram o desrespeito e ampliaram o quadro de polarização. O fanatismo se revelou com veemência na criação artificial de um suposto mito que empreendeu esforços na defesa de pautas ligadas à segurança pública, liberação de armas, combate à corrupção, redução da maioridade penal, ataque às minorias e demonização do espectro político de esquerda com ênfase ao PT – Partido dos Trabalhadores que, por sua vez, fragilizou-se por ter cometido inúmeros erros. Sabemos ainda que Bolsonaro recebeu apoio de grupos religiosos protestantes bem organizados que foram seduzidos pelo discurso em favor da família e do conservadorismo de costumes. Ganhou apoio de grande parte do empresariado nacional ao se apresentar como defensor de uma agenda liberal que seria comandada por Paulo Guedes. Obteve o aval dos militares, do setor de agronegócios e dos representantes de uma extrema direita raivosa que passou a defender abertamente um golpe de estado. A grande lástima consiste no fato de que muitos brasileiros relativizaram os riscos que Bolsonaro representava para a democracia e não poucas pessoas que conheço já manifestaram o seu arrependimento. Não posso deixar de pontuar que foi deplorável a incapacidade dos partidos progressistas de se articularem numa aliança coesa para fazer frente a uma candidatura que sinalizava a instalação de um governo que promoveria beligerância, paralisia e retrocessos. Assim, com a deterioração do quadro político, econômico e social no atual contexto de pandemia as perspectivas não são nada boas para o Brasil. Nossa imagem no exterior foi deteriorada em razão dos absurdos cometidos contra o meio ambiente, da subserviência vergonhosa na relação bilateral com os Estados Unidos e da desconstrução de uma agenda positiva com outros países. São motivos de grande apreensão: a mortandade de milhares de brasileiros durante a pandemia, o desemprego, a crise econômica, o aumento da pobreza, a falta de articulação para lidar com o aumento dos casos de Covid-19 e a paralisia na condução de políticas públicas em áreas essenciais. É possível perceber que a desconfiança em relação ao sistema político acentuou-se e que as desigualdades se revelaram com maior nitidez com o enfrentamento da pandemia. Não existe uma solução simples para tantos problemas. Mais do que nunca a superação das adversidades dependerá da capacidade do nosso povo de resistir e de se reinventar. Além disso, esperamos que legitimidade das instituições prevaleça no sentido de que sejam apontadas as alternativas que estão previstas no ordenamento do estado democrático de direito.
Brasil 060 News – Professor, fale um pouco sobre o seu livro “Leitura na prisão”.
Antonio Artequilino – O livro resulta de uma pesquisa acadêmica na qual me propus a fazer a análise do sistema prisional brasileiro a partir da interlocução com a realidade do Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia. A problemática do analfabetismo e os baixos níveis de escolarização da população carcerária reflete a situação da população em geral. Tal constatação advém das pesquisas censitárias e revelam uma grande dívida social. Pessoas analfabetas ou de baixa escolaridade são excluídas do seu direito à cidadania e estão presas nos grilhões da miséria e da falta oportunidades. Não é possível, desconsiderar o contingente de marginalizados que não tiveram a oportunidade de aprender a ler e a escrever e que estão nas celas dos estabelecimentos prisionais sem nenhuma perspectiva de serem ressocializados. Na ausência de políticas públicas voltadas para a promoção dos direitos de cidadania dos detentos que cumprem pena nas prisões brasileiras o crime organizado consegue arregimentar um número cada vez maior de pessoas. Diante desse quadro fiz alguns questionamentos importantes: de que forma o processo de alfabetização contribui para a liberdade da palavra no ambiente do cárcere e no processo de humanização em um ambiente brutalizado? Que compreensão possuem os detentos de questões importantes que estão presentes no cotidiano da prisão, tais como: crime, pena, estigma, liberdade, esperança e identidade? Esclareço que o livro está estruturado em três capítulos. O primeiro capítulo, “O sistema prisional”, analisa o contexto do sistema prisional brasileiro, os Direitos Humanos na prisão, a Lei de Execuções Penais e a questão penitenciária em nível nacional. Procura apresentar e compreender o Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia por meio da fala dos presos presentes no cotidiano penitenciário. No segundo capítulo, “Dentro do cárcere”, o espaço prisional e a teoria do poder da prisão são discutidos através das vozes que ecoaram do interior das celas em um diálogo com os teóricos estudados. O terceiro capítulo, “Leituras possíveis e impossíveis na prisão”, analisa a formação de leitores, a alfabetização, o letramento, as práticas e representações de leitura dos detentos alfabetizadores e alfabetizandos dentro da prisão, destacando as suas práticas de submissão e resistência.
Brasil 060 News – O livro destaca o papel da leitura num espaço de encarceramento. O que revelou sua pesquisa sobre os leitores detentos e quais são as contribuições do livro?
Antonio Artequilino – Antes da pesquisa eu havia trabalhado como coordenador pedagógico do processo de alfabetização dos presos, fato que me ofereceu uma vivência direta com os detentos dentro do espaço privativo de liberdade. Durante a pesquisa de mestrado, pude constatar que as próprias falas dos detentos demonstraram que o esforço realizado em prol da (trans)formação do preso alienado em leitor crítico contribuiu para despertar em muitos encarcerados a vontade de continuar lendo e estudando. Foi perceptível uma mudança de mentalidade e amadurecimento dos encarcerados que se tornaram leitores críticos. Portanto, a análise do discurso dos detentos que participaram do processo de alfabetização no Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia no período de julho de 2007 a junho de 2008, mostrou a grande importância das suas práticas e representações de leitura no espaço do cárcere. Foi possível compreender também as práticas educativas dos detentos, tanto formais como informais, que permitiram que muitas histórias de vida fossem reveladas, confrontando vários discursos. Do ponto de vista político e social, pude compreender que o cometimento de outros crimes poderia ser evitado quando o detento retorna para o convívio social após o cumprimento da pena. Ao contrário das manifestações de ódio promovidas por grupos retrógrados e reacionários, o acolhimento da sociedade aos egressos do sistema prisional poderia acontecer de forma efetiva se o processo de ressocialização dentro do espaço prisional, o qual está previsto na Lei de Execuções Penais, pudesse contemplar as práticas educativas do ensino regular, em tempo integral, associadas ao trabalho profissionalizante. Dentro ou fora do cárcere a educação é uma prática social, podendo em muitos aspectos ser também considerada uma das formas de trabalho, uma vez que prepara para o exercício do trabalho e se faz mediante atividades de trabalho. Por outro lado, a ociosidade constante, a crescente marginalização dos presos e a delinquência nas atividades das facções criminosas promovem as inúmeras tentativas de fugas, bem como o uso e o tráfico de entorpecentes no ambiente carcerário. Posso asseverar que a promiscuidade e a violência exacerbada que acontecem nas prisões poderiam ser combatidas de maneira mais eficaz pela educação e pelo trabalho. A realidade do sistema penitenciário brasileiro revela que a violência imposta pelo poder coercitivo não cumpre os objetivos propostos na norma legal. Nesse sentido, outros questionamentos surgem: que resultado haveria na redução do contingente carcerário se tivéssemos no Brasil a garantia do pleno exercício da cidadania? O que aconteceria se todos tivessem direito a educação de qualidade, saúde, transporte, saneamento básico, moradia, trabalho e oportunidades iguais? A resposta é simples: não poderiam existir as mazelas sociais que empurram pessoas pobres, majoritariamente negras, analfabetas ou pouco escolarizadas, geralmente habitantes das favelas e das zonas periféricas das grandes cidades para as celas superlotadas do sistema prisional. O total da população carcerária no Brasil é de aproximadamente 750 mil detentos, o que faz do nosso país o terceiro país com mais presos no mundo, atrás apenas dos Estados Unidos e da China. Um dado muito preocupante consiste no fato de que os presos provisórios correspondem a aproximadamente 40% de todo o contingente de encarcerados, ou seja, quase metade dos presos não foram sequer condenados pela justiça. Os números mostram com clareza que o sistema penal brasileiro é extremamente repressivo por sua própria ênfase na punibilidade e atinge quase que exclusivamente os pobres, os negros e os iletrados da nossa sociedade. As exceções que envolvem empresários, políticos e alguns abastados que são presos pontualmente apenas confirmam a regra. Por tudo isso, afirmo humildemente que a obra continua bastante atual. Defendo no livro “Leitura na prisão” que a educação nas prisões deve fazer parte de políticas públicas complexas, bem articuladas e abrangentes, que reinventem o ambiente do cárcere e o transformem em um espaço de ressocialização, de formação educativa, de cidadania e de humanização, no qual todos os que cometeram delitos possam cumprir suas penas na forma da lei e com o objetivo de poderem ser recuperados para o retorno ao convívio social.
Brasil 060 News – Professor, queremos saber um pouco mais sobre o livro “Sindicatos dos Trabalhadores Bancários – Formações Discursivas em Concorrência” que será publicado nas próximas semanas. O que é importante destacar nessa obra?
Antonio Artequilino – Trata-se de uma adaptação da minha tese de doutorado para o formato livro. Entre os anos de 2014 a 2018, tive a satisfação realizar na PUC São Paulo o curso de doutorado no Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem (LAEL). Ressalto que tive a honra de ser orientado pela Prof.a Dr.a Maria Cecília Pérez de Souza-e-Silva que é, sem sombra de dúvidas, uma grande autoridade no mundo acadêmico nas áreas de Linguística Aplicada, Teoria e análise do texto e do discurso de tradição francesa, Linguagem e Trabalho. Gostaria de destacar que o LAEL forma mestres e doutores para atuar nas áreas de Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem, bem como recepciona pós-doutores para desenvolvimento de atividades de pós-doutorado. De fato, a tarefa de formar pesquisadores altamente qualificados não é fácil, mas a nossa sociedade necessita cada vez mais de pesquisas científicas voltadas para a promoção do conhecimento transformador que, por sua vez, requer a interação dialógica entre teoria, prática, discussão, aceitação de novas ideias, avanço e inovação. Nesse sentido, acredito humildemente que a importância do meu livro se deve à sua contemporaneidade e ao tratamento de questões permanentes que envolvem a minha opção pela linha de pesquisa Linguagem e Trabalho. Sabemos que a linguagem está em constante movimento e que sua complexa dinâmica impulsiona a história, transforma a realidade, constrói alternativas e projeta a necessidade da construção de sentido para o trabalho. Portanto, a partir da linguagem podemos compreender a relevância do trabalho para a humanidade, o qual alcança todas as áreas do conhecimento humano e mobiliza todos os aspectos do viver em sociedade. Da minha parte, defendo uma concepção de trabalho humanizador, capaz de expressar a ação humana consciente e transformadora da realidade. O trabalho humanizador assume características de honradez, respeitabilidade e dignidade na medida em que se revela significativo como fonte de criatividade, de autonomia e da satisfação de necessidades materiais e imateriais. Em contrapartida, a precarização do trabalho amplia as contradições do emprego e promove o embrutecimento das relações laborais no contexto das sociedades capitalistas. No setor bancário, a pressão por metas, o assédio moral, a crescente alienação dos trabalhadores, a apropriação absurdamente desproporcional do lucro dos banqueiros e a diminuição dos postos de trabalho dos bancários em decorrência dos investimentos no processo de automação promovem grandes incertezas. Daí a razão pela qual me debrucei sobre as condições de trabalho oferecidas pela indústria bancária e a atuação dos sindicatos dos trabalhadores bancários no clímax de uma negociação coletiva até chegar ao ápice de minha tese de doutorado: a análise das práticas discursivas dos sindicatos dos bancários de São Paulo e de Santos.
Brasil 060 News – A obra oferece uma pesquisa científica de grande envergadura por tratarde questões muito complexas. Fale um pouco sobre a base teórica adotada.
Antonio Artequilino – Li inúmeras obras, passei noites inteiras acordado e durante o período de 2014 a 2018, renunciei aos finais de semana e feriados. Senti-me instigado a pensar o mundo do trabalho à luz da Análise do Discurso (AD). Não encontrei nenhuma pesquisa que tenha se proposto a trabalhar especificamente com o espaço interdiscursivo envolvendo duas entidades sindicais representativas da categoria profissional dos bancários. Assim, assumi a tarefa de construção do conhecimento científico tendo como suporte teórico-metodológico a AD de linha francesa. Portanto, com o propósito de analisar a relação interdiscursiva que envolve e constitui os discursos dos sindicatos dos bancários de São Paulo e de Santos no período de negociação da Campanha Salarial de 2015, analisei algumas das diferentes dimensões da semântica global desses discursos, considerando como se constituiu esse espaço de trocas frente a um mesmo referente (banqueiros) no período de campanha salarial e negociação coletiva. Devo esclarecer de uma forma mais didática que a semântica global rege os múltiplos planos do discurso e, de outro modo, concebe que esses planos discursivos devem ser tratados como práticas discursivas. Ademais, acrescento que a fundamentação teórica de minha tese advém das ricas contribuições do prestigiado estudioso francês Dominique Maingueneau, professor de Linguística no Departamento de Língua Francesa da Universidade Paris IV-Sorbonne.
Brasil 060 News – Quais foram as dificuldades encontradas para conciliar o trabalho que realizava em um grande banco com o desafio de desenvolvimento de uma tese.
Antonio Artequilino – Quando comecei o curso de doutorado em 2014, estava trabalhando em São Paulo como gestor da agência Estilo Ministério da Fazenda, uma unidade de negócios especializada no atendimento de clientes de alta renda do Banco do Brasil. Em 2016, fui cedido para trabalhar no extinto Ministério do Trabalho em Brasília e no final desse mesmo ano fiz um pronunciamento numa audiência pública representando o Ministro do Trabalho no qual defendi os trabalhadores bancários e defendi a atuação do Banco do Brasil como um banco público que deve cumprir contribuir com o desenvolvimento do país. No entanto, meu pronunciamento desagradou a alguns proeminentes executivos do Banco do Brasil que estavam presentes. Quando retornei da cessão no setor público em julho de 2017, sofri o mais pérfido processo de estigmatização, represália e perseguição no BB. Foi tudo muito difícil e quase desisti de continuar com a minha pesquisa. Depois de várias idas e vindas, pude assumir em 2018, a gerência de uma agência de varejo em São Paulo. Nesse período eu tinha que conciliar o trabalho na agência Jabaquara durante o dia com a escrita da minha tese à noite. Felizmente, a perseverança foi recompensada e consegui defender a tese com êxito ainda no ano de 2018. Por oportuno, agradeço imensamente os amigos das agências Estilo Ministério da Fazenda e Jabaquara pelo apoio que me ofereceram nos momentos mais fatigantes e complicados. Também tive o privilégio de conviver com servidores públicos do mais alto nível de competência técnica e administrativa no extinto Ministério do Trabalho em Brasília. Repudio os injustos ataques proferidos pelo atual Ministro da Economia contra os servidores públicos e posso afirmar sem nenhum medo de errar que guardarei na memória e no coração todo o acolhimento e o respaldo que recebi de minha equipe de trabalho no MTb durante todo o período de minha cessão no setor público. Eles me incentivaram a continuar com a pesquisa e contribuíram com as minhas reflexões acadêmicas através da riqueza dos nossos diálogos. O poeta e ensaísta inglês Joseph Addison disse que “a amizade desenvolve a felicidade e reduz o sofrimento, duplicando a nossa alegria e dividindo a nossa dor”. Nessa perspectiva, posso afirmar que os problemas que enfrentei no doutorado foram muitos, mas as grandes amizades que fiz por onde passei me ajudaram na conciliação das atividades profissionais e acadêmicas.
Brasil 060 News – O momento é propício para a publicação de um livro que propõe uma reflexão crítica em torno do trabalho e do sindicalismo?
Antonio Artequilino – A sombra tenebrosa da ignorância e da intolerância transformou o debate público no Brasil numa arena selvagem de ofensas, disseminação de mentiras e desrespeito ao contraditório. O momento atual é caracterizado por grandes retrocessos. Por exemplo, os projetos relacionados direta ou indiretamente às ciências exatas e biológicas possuem absoluta preferência na concessão de bolsas e auxílios em detrimento dos pesquisadores de ciências humanas. Essa restrição afetará diretamente os estudantes mais pobres que precisam dos financiamentos estudantis. Sabemos que ao longo do tempo a sociologia, a filosofia, a antropologia, a geografia humana e o ensino de história foram alvos de ataques cruéis e de perseguições por parte de regimes totalitários por assumirem posicionamentos críticos contra a barbárie. Na minha opinião, sem as ciências humanas o mundo seria paupérrimo de inteligência, sensibilidade e beleza, ao passo que as demais ciências, mesmo sendo sumamente importantes, perderiam a razão de existir. O grande alento que temos hoje no Brasil consiste no fato de que ainda vivemos numa democracia, razão pela qual devemos resistir e lutar pelo advento de dias melhores. Em suma, considerando que o instante presente exige uma compreensão mais detida, crítica e metodológica da sociedade e de suas relações, entendo que o momento é muito propício para a publicação do meu livro.
Brasil 060 News – Chegou ao nosso conhecimento que você gosta de envolver as pessoas em processos de reflexão crítica da realidade. Por favor, envolva os nossos leitores.
Antonio Artequilino – Tentarei com muita satisfação envolver os leitores do site Brasil 060 numa reflexão significativa. Vivemos numa sociedade que cada vez mais sucumbe aos ditames do consumismo e da ilusão mercantil-capitalista. Muitos acreditam que “vencer na vida” implica na acumulação em grande medida de riqueza material. São pessoas que esqueceram que a brevidade da vida humana é absolutamente inevitável. Dessa forma, considerando o caráter transitório da vida e a impossibilidade das pessoas de levarem consigo, após a morte, o dinheiro e as riquezas materiais acumuladas, não é minimamente aceitável corroborar com a prevalência do “homo economicus”. Trata-se de um conceito abstrato que tenta definir o homem moderno como um ser que estabelece para si metas econômicas como forma de justificação do seu próprio viver. Cabe lembrar que o termo “Homo sapiens” deriva do latim e significa “homem sábio” ou “homem que sabe”. Por sua vez, o “Homo economicus” só sabe que deve ganhar dinheiro, status e reconhecimento por seus feitos. Invariavelmente, é previsível, insensível, metódico e sempre busca o melhor para si da maneira que ele próprio julga ser “racional”. O “Homo economicus” pode ser vistos notadamente nas empresas, nos empreendimentos públicos e privados e nas esferas governamentais de poder. Conspiram uns contra os outros, querem os maiores lucros ou intentam ganhar os maiores salários a qualquer custo. São os mesmo que cometem assédio moral, desrespeitam, estigmatizam, perseguem e prejudicam as pessoas que ousam contrariar seus interesses ou discordar de suas ideias. A mediocridade do “Homo economicus” é apenas uma sombra do conceito de homem unidimensional elaborado por Herbert Marcuse, segundo o qual, sob a égide do atual capitalismo, nos submetemos aos valores do mercado que, unilateralmente, estabelece um modo de vida consensual e inquestionável. Dessa forma, vivemos sob o domínio do homem unidimensional que atualmente estabelece as condições materiais e subjetivas para o mundo inteiro. No campo da subjetividade, as pessoas são levadas a pensar e agir de acordo com os valores materiais da busca da acumulação e do consumo exacerbado que é sempre inspirado nos produtos e marcas de grandes empresas. De maneira paradoxal, existe uma suposta liberdade que está restrita apenas ao mercado e que aponta para a “servidão voluntária” em favor da ordem hegemônica. Ao denunciar o “Homem unidimensional” Marcuse critica o pretenso consenso globalizado que não admite qualquer discordância a tudo o que ponha em risco os pressupostos da entidade denominada mercado. Enfim, a partir das postulações de Marcuse, faço as seguintes perguntas: Por que o cidadão parece ter sido substituído pela figura do consumidor acrítico, individualista e conformado com a realidade que o cerca? Como defender o conceito de cidadania num país rico que condena a maioria dos brasileiros a um viver de pobreza, de ignorância e de total falta de perspectivas? O que devemos fazer para que o bem comum prevaleça sobre a unidimensionalidade de um sistema injusto e ilusório que distribui a miséria para muitos e concentra as riquezas nas mãos de tão poucos? Presumo que as respostas para essas questões apontem para a necessidade de resistência. Isto posto, penso que podemos resistir na medida em que assumimos uma postura crítica diante da realidade. Podemos ainda cultivar a espiritualidade, priorizar o amor como vínculo essencial que nos une com todos os nossos semelhantes, exercer empatia, valorizar a solidariedade e, como não poderia deixar de ser, trabalhar em prol das transformações necessárias capazes de fazer do mundo um lugar mais humano. Esta despretensiosa provocação foi uma tentativa de envolver os nossos leitores numa reflexão que só poderá fazer sentido se começarmos a questionar o nosso papel na condição de seres conscientes no contexto de uma sociedade que precisa de urgentes mudanças.
Brasil 060 News – Professor, chegamos ao final da entrevista. Agradecemos a sua gentileza em nos receber com tanta simpatia e boa vontade. Por favor, fique à vontade para se despedir dos nossos leitores.
Antonio Artequilino – Durante a entrevista abordei aspectos históricos que explicam grande arte dos problemas que enfrentamos atualmente no Brasil. Não obstante, devemos lembrar que, mesmo permanecendo condicionados pela história, não somos determinados por seus desígnios. Nessa perspectiva, invoco o exemplo do grande líder pacifista Mahatma Gandhi que afirmou o seguinte: “O futuro dependerá daquilo que fazemos no presente”. Despeço-me recomendando a esperança na construção de um futuro melhor. Porém, não esqueçam de que os sonhos mais bonitos se realizam no presente, pois como dizia Aristóteles “A esperança é o sonho do homem acordado”. Agradeço de coração a oportunidade que me foi oferecida pelo site Brasil 060. Muito obrigado!