Um dossiê elaborado pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) em parceria com o Indigenistas Associados (INA) e publicado nesta segunda-feira (13/6) alerta sobre atuação “anti-indígena” da Funai sob a gestão de Bolsonaro e Marcelo Xavier, presidente da fundação. De acordo com a publicação, a atuação da chamada “Nova Funai” tem sido marcada pela não demarcação de territórios indígenas, perseguição aos funcionários concursados e lideranças indígenas, somada a uma militarização sem precedentes do órgão.
Intitulado de Fundação anti-indígena: Um retrato da Funai sob o governo Bolsonaro, o dossiê foi elaborado após três anos de monitoramento conjunto e conta com análise detalhada de documentos oficiais, colhidos desde o início de 2019, depoimentos de servidores, materiais de imprensa e publicações de organizações da sociedade civil. Ao longo das 211 páginas, a publicação joga luz sobre o processo de desmonte da fundação.
“INA e Inesc consideram que a Funai é um caso gritante da prática de destruição de políticas que foi acionada em nível federal no Brasil durante o ciclo governamental 2019-2022. A erosão por dentro da política indigenista se soma à de políticas como a ambiental, a cultural, a de relações raciais, naquilo que diferentes pesquisadores vêm demonstrando, por meio de noções como infralegalismo autoritário ou assédio institucional, ser em verdade modus operandi do governo Bolsonaro”, alega o documento.
Militares tomaram conta dos cargos da Funai
Um dos principais pontos do dossiê mostra que das 39 Coordenações Regionais (CRs) do órgão, somente duas são chefiadas por servidores civis. Outras 24 são coordenadas por oficiais das Forças Armadas e policiais militares ou federais e o restante é ocupado por funcionários na condição de servidores substitutos ou sem vínculo com a administração pública.
“Os currículos dos eleitos ([por Marcelo Xavier, presidente da Funai) chamam atenção pela falta: quase não se notam experiências de atuação com a política indigenista, ou mesmo com cargos de direção em administração pública. Alguns deles, inclusive, definem-se como “pecuaristas” e não escondem suas alianças com o agronegócio, como é a situação do chefe da Coordenação Regional Araguaia Tocantins, sediada em Palmas (TO), que se envolveu em caso de nomeação denunciado como prática de nepotismo”, denuncia o relatório.
O dossiê é publicado em meio à indignação global com o desaparecimento do indigenista Bruno Araújo Pereira e do jornalista inglês Dom Phillips, colaborador do jornal The Guardian. Eles desapareceram em uma área conhecida como Vale do Javari, região de selva amazônica que abriga pelo menos 26 povos indígenas, muitos deles isolados da civilização exterior. O documento aponta que o sumiço do ativista e do jornalista não é um caso isolado, já que “as preferências do atual presidente da Funai resultaram em uma série de trágicas histórias alegóricas do anti-indigenismo da Nova Funai“.
A publicação inclusive denuncia o comportamento do Coordenador Regional do Vale do Javari, local em que Dom e Bruno sumiram. De acordo com o dossiê, o coordenador foi gravado falando em “meter fogo” em índios isolados. Outros casos também foram denunciados no relatório. “Segundo relatos de servidores ouvidos, o coordenador que passou por uma CRl , costumava fazer reuniões com sua pistola Glock sobre a mesa, e chegou a afirmar a seus subordinados que ‘de índio não entendo; entendo é de dar tapa na cara de vagabundo’”, apontou.
Além desses, o dossiê ainda relembra o caso em que um coordenador foi flagrado por câmeras de segurança agredindo um indígena na sede da unidade que chefia, a CR Xavante (MT). “Na CR Araguaia Tocantins, um chefe apoiou ação policial de busca e apreensão em aldeia cujo resultado foi o indígena procurado ser morto, fatalmente baleado, na presença de crianças e outros membros da comunidade”, denunciou.
Discursos de Bolsonaro levam a invasões e desmatamento
O dossiê apontou que na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 709 (ADPF 709), proposta perante o Supremo Tribunal Federal pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), se afirma que “os discursos do presidente da República contra os povos indígenas levaram a ondas de invasões de suas terras, inclusive no que diz respeito aos indígenas isolados e de recente contato”.
“A destruição dos direitos territoriais indígenas estava na boca de Bolsonaro desde ao menos o período pré-eleitoral, quando o então pré-candidato declarava que não iria demarcar um centímetro sequer de Terras Indígenas (TIs)”, relembrou o dossiê.
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 231, reconhece os direitos às terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas e impõe a obrigação estatal de demarcá-las, dessa forma, as afirmações do presidente e as ações que se estabeleceram desde 2019 são inconstitucionais. “O projeto bolsonariano de acabar com o que denomina ‘indústria de demarcação de terras indígenas’ significa lançar mão de artifícios e subterfúgios para descumprir, de modo escuso, o que está constitucionalmente garantido”, afirmou o documento.
“Aspectos relevantes acerca disso são o desmatamento e a mineração em terras indígenas demarcadas, que apresentaram um aumento considerável a partir de 2018. Dados do PRODES [Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite], sistema do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), revelam que, em 2019, a taxa anual de desmatamento (avaliada entre agosto de 2018 e julho de 2019) em toda a Amazônia foi de 34,41%, mas esse incremento foi de 80% quando consideradas apenas as terras indígenas”, mostrou o dossiê.
Além disso, o documento também acusa Bolsonaro de reduzir as verbas destinadas às ações atribuídas a Funai e de intimidação, por parte de Marcelo Xavier e de seus escolhidos para o comando da Fundação, dos, poucos, servidores que ainda restam dentro da Funai.
Até a última atualização desta reportagem a assessoria de imprensa da Funai não havia comentado o estudo. O espaço segue aberto para futuras manifestações.
Por Correio Braziliense